Fugas - restaurantes e bares

  • Prato 1: Coelho assado em vinha de alhos, abóbora, beterraba e pó de avelã (Vítor Sobral)
    Prato 1: Coelho assado em vinha de alhos, abóbora, beterraba e pó de avelã (Vítor Sobral) DR/Mário Cerdeira
  • Quadro 1: Os Galgos
    Quadro 1: Os Galgos DR/Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso
  • Prato 2: Presa ibérica grelhada, enguia fumada, amido de batata, pimento curado (João Rodrigues)
    Prato 2: Presa ibérica grelhada, enguia fumada, amido de batata, pimento curado (João Rodrigues) DR/Mário Cerdeira
  • Quadro 2: Os Ciganos
    Quadro 2: Os Ciganos DR/Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso
  • Prato 3: Pescada escalfada num creme de iodado, alho francês e codium, folhas de ostra (Miguel Laffan)
    Prato 3: Pescada escalfada num creme de iodado, alho francês e codium, folhas de ostra (Miguel Laffan) DR/Mário Cerdeira
  • Quadro 3: Avant la corrida
    Quadro 3: Avant la corrida DR/Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso
  • Prato 4: Linguado, funcho, beterraba e sumo de azeitona galega (Rui Silvestre)
    Prato 4: Linguado, funcho, beterraba e sumo de azeitona galega (Rui Silvestre) DR/Mário Cerdeira
  • Quadro 4: Mucha
    Quadro 4: Mucha DR/Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso
  • Prato 5: Rabo de vitela, sapateira, cânhamo, malagueta indiana, lima kafir (Ana Moura)
    Prato 5: Rabo de vitela, sapateira, cânhamo, malagueta indiana, lima kafir (Ana Moura) DR/Mário Cerdeira
  • Quadro 5: Trou de la Serrure Parto da Viola
    Quadro 5: Trou de la Serrure Parto da Viola DR/Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso
  • Prato 6: Lombinho de porco preto, lagostim, milho, alperce, teriyaki e sésamo (André Silva)
    Prato 6: Lombinho de porco preto, lagostim, milho, alperce, teriyaki e sésamo (André Silva) DR/Mário Cerdeira
  • Quadro 6: A Russa e o Fígaro
    Quadro 6: A Russa e o Fígaro DR/Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso
  • Prato 7: O Bosque (sobremesa de Pedro Lemos)
    Prato 7: O Bosque (sobremesa de Pedro Lemos) DR/Mário Cerdeira
  • Quadro 7: D. Quixote
    Quadro 7: D. Quixote DR/Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso

A que sabe uma pintura de Amadeo?

Por Alexandra Prado Coelho

A Rota das Estrelas passou por Amarante, mas desta vez o chef da Casa da Calçada quis sair do restaurante e levou o jantar até ao museu.

A mesa estendia-se, quase a perder de vista, ao longo do corredor principal do Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso, em Amarante. À nossa volta, quadros e esculturas. Na mesa, rosas vermelhas. E nos bastidores sete chefs a preparar sete pratos — cada um inspirado num quadro diferente de Amadeo.

André Silva, chef do Largo do Paço, o restaurante da Casa da Calçada, com uma estrela Michelin, foi o anfitrião da mais recente edição da Rota das Estrelas, o evento que ao longo do ano percorre os restaurantes estrelados do país. Mas André Silva não quis ficar dentro da Casa da Calçada porque acredita que a Rota deve abrir-se à cidade. “Temos que ser os embaixadores de Amarante”, diz.

Por isso, para o segundo jantar do evento, mudou-se de tachos e panelas para o Museu Amadeo, do outro lado da histórica Ponte de São Gonçalo. Aí, os sete chefs andaram às voltas com alguns dos mais conhecidos quadros de Amadeo — um filho da terra — tentando traduzi-los em pratos que fossem não apenas bonitos mas saborosos.

Mas como se transforma uma pintura num prato? Pensa-se primeiro nas cores? Nas formas? No tema? Fomos perguntar a cada um dos chefs o que o inspirou nas telas de Amadeo.

Vítor Sobral
Tasca da Esquina, Lisboa
Quadro: Os Galgos
Prato: Coelho assado em vinha de alhos, abóbora, beterraba e pó de avelã

Vítor Sobral diz que o seu foi um processo “muito básico”. “Tentei o mais possível respeitar as cores”, explica, apesar de o azul ser particularmente difícil de transpor para comida. Coube-lhe um quadro figurativo e por isso tinha um tema: os galgos e os coelhos. Excluída a hipótese de cozinhar cão, optou naturalmente pelo coelho. Depois foi montar uma espécie de pintura no prato, na qual cada gota de cor diferente era também um sabor diferente. “Tentei que fosse um prato chamativo em termos visuais, apesar de não ser o que mais gosto de fazer.” Acredita que pratos demasiado elaborados “assustam as pessoas, que não os compreendem”. Mas gostou da experiência em Amarante, sobretudo pela oportunidade de trabalhar com outros cozinheiros da geração mais jovem. “Fiquei muito feliz com a rapaziada. Estão bem preparados.”

João Rodrigues
Feitoria, Lisboa
Quadro: Os Ciganos
Prato: Presa ibérica grelhada, enguia fumada, amido de batata, pimento curado

Achou que o quadro que lhe foi atribuído “não era fácil”. Se noutros casos podia-se ir “pela estética, pela harmonia ou o caos, ou destacando um elemento”, aqui Amadeo representou dois ciganos e um cavalo. “Procurei inspirar-me no que o quadro tentava transmitir: uma vida na rua, uma vida de liberdade, as sonoridades da música cigana, a alegria.” E isso levou-o para a comida de rua, “que nos faz pensar em grelha, fumo, fogo”, sabores que se vão encontrar no prato que criou. Sendo o quadro sobre a Andaluzia, foi buscar o porco ibérico para fazer a ligação entre Espanha e Portugal. Considera que este é um exercício interessante porque “obriga a focar o pensamento”. Mas, sublinha, prefere “ter uma anarquia maior”. “Cada vez mais sinto que é a minha cozinha, criada através dos meus olhos, da forma como eu penso, as coisas que gosto de comer, as minhas memórias, as minhas ideias.”

Miguel Laffan
L’And Vineyards, Montemor
Quadro: Avant la corrida
Prato: Pescada escalfada num creme de iodado, alho francês e codium, folhas de ostra

Foi a suavidade da composição de Amadeo em Avant la corrida que primeiro chamou a atenção de Miguel Laffan. Confessa que não conhecia a obra do pintor e isso tornou este desafio ainda mais interessante, obrigando-o a ir pesquisar. No entanto, quando começou a pensar no quadro teve poucas dúvidas sobre qual o caminho a seguir. “Era complicado representá-lo geometricamente, por isso inspirei-me mais nas tonalidades e nas cores, os verdes, os cremes, o pastel.” Percebeu também que tinha que dar a si próprio alguma liberdade criativa porque a ideia não era transpor um quadro exactamente igual para a mesa mas sim interpretá-lo com um olhar próprio. “Não fiquei obcecado em representá-lo, isso seria extremamente complexo.” E assim, jogando com sabores de mar, também eles suaves, e cores pastel, criou o seu prato.

Rui Silvestre
Bon Bon, Algarve
Quadro: Mucha
Prato: Linguado, funcho, beterraba e sumo de azeitona galega

Também Rui Silvestre começou por pensar nas cores, estas fortes e quentes, do quadro que lhe apresentaram. “Mas depois achei que não fazia sentido ir por aí e decidi ir mais pelas texturas.” Sentiu que a pintura de Amadeo era “uma harmonia um bocado caótica” e por isso quis seguir esse caminho. O prato que fez, apesar da brancura do linguado e do pedacinho de choco, tem também cores fortes, da beterraba e do sumo de azeitona, e tem sabores contrastantes, entre a subtileza do peixe e a doçura do funcho. Dispara em várias direcções, como o quadro, mas cria uma unidade dentro desse caos aparente. Rui só tinha tido uma experiência anterior de criar a partir de uma fonte de inspiração exterior à cozinha, mas tinha sido com música e não com pintura. “É interessante perceber como eu interpreto de uma maneira e se calhar outro chef interpretava o mesmo quadro de outra maneira totalmente diferente. É uma experiência — se calhar no futuro vai servir-me para outras coisas.”

Ana Moura
Cave 23, Lisboa
Quadro: Trou de la Serrure Parto da Viola
Prato: Rabo de vitela, sapateira, cânhamo, malagueta indiana, lima kafir

Antes de o prato de Ana Moura chegar à mesa, chegou um papel com a explicação de como a chef tinha partido de um quadro “que combina os mais variados elementos, desde as colagens cubistas e os discos da pintura de Delaunay, até aos objectos de inspiração popular portuguesa como sejam a viola, a olaria, a boneca de trapos e os morangos”. Ana destacou alguns destes elementos e, brincando também com as linhas rectas da pintura, transpôs para o seu prato uma parte da composição, reorganizando o quadro de acordo com uma lógica própria. “Estava à espera de um quadro simples e este tinha mil e uma coisas”, diz. “Tentei, sem saber muito de arte, perceber o que me transmitia visualmente. Tem muitas linhas rectas, tem o voyeurismo do buraco da fechadura, pensei num prato inspirado um pouco no erotismo.” Daí a malagueta, por exemplo. Aliás, todo o prato é feito de sabores fortes e cores intensas, a par de pequenos piscar de olho como a pétala de rosa com lemon curd e ovas ou o caviar de cânhamo em pickle de spirulina.

André Silva
Largo do Paço, Casa da Calçada, Amarante
Quadro: A Russa e o Fígaro
Prato: Lombinho de porco preto, lagostim, milho, alperce, teriyaki e sésamo

Foram também as cores que primeiro chamaram a atenção do chef da Casa da Calçada. “Coube-me um quadro mais definido. Não era um daqueles mais loucos”, diz, sorrindo. Havia elementos identificáveis, como uma mulher de traje tradicional, um cão, algo que parecia um assador de castanhas. Mas André fixou-se nas cores e quis transportá-las todas para o seu prato. “Fui escolhendo uma a uma e o prato começa aí: molho de vinho tinto e podemos eliminar os vermelhos, temos o amarelo torrado, vamos para o milho. Açafrão, vamos pôr açafrão. Depois é tentar a conjugação das coisas. Nos vermelhos é o puré de beterraba. Para o branco, o que vou pôr? Vamos à pipoca.” Era uma paleta de oito a dez cores e foi preciso encontrar um ingrediente para cada uma delas. O exercício agradou-lhe. “Obriga-nos a sair do banal, do cómodo. Fazer o jantar no museu já é começar com audácia, então temos que continuar com audácia.”

Pedro Lemos
Restaurante Pedro Lemos
Quadro: D. Quixote
Prato: O Bosque (sobremesa)

A tarefa que coube a Pedro Lemos — a sobremesa — tinha uma dificuldade acrescida: as pessoas já tinham provado vários pratos antes. Por isso foi buscar morangos e sabores frescos e com acidez para uma sobremesa leve e que deixasse uma sensação de bem-estar depois de uma grande refeição. A obra que serviu de ponto de partida representava D. Quixote. “O quadro é bastante perceptível, então decidimos usar como inspiração o bosque. A partir daí começámos a pensar em produtos, frutos mas não só, que se encontram no bosque.” Mas não quis fazer um bosque sombrio, as cores alegres do quadro levavam-no para uma ideia diferente. “Quisemos com cada cor ter um sabor marcante.” E, assim, foi com morangos do bosque que nos despedimos da Rota das Estrelas – e de Amadeo.

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