O festival Peixe em Lisboa – no Pavilhão Carlos Lopes, Parque Eduardo VII, em Lisboa, até dia 9 – faz dez anos. O número redondo do aniversário foi o pretexto para pedirmos aos dez chefs dos restaurantes representados este ano que escolhessem, entre a oferta que apresentam, dez pratos em que usem um peixe ou um marisco que gostem particularmente de trabalhar.
Bertílio Gomes – Cavala
Há muito tempo que Bertílio Gomes, do restaurante Chapitô à Mesa, em Lisboa, se encantou com a cavala. Mas recorda que as primeiras tentativas para a introduzir numa carta foram falhadas. O nome cavala era suficiente para que ninguém pedisse o prato. E, no entanto, Bertílio acreditava não só na qualidade do produto, no sabor e textura muito interessantes da cavala, como na necessidade de valorizarmos ingredientes que, por vezes por preconceito, tendemos a desprezar (outro caso que tem vindo a trabalhar é o da batata-doce de Alzejur). Um dia teve uma ideia: mudou o nome do prato e em vez de cavala chamou-lhe lisete. Foi um sucesso. Por isso, o prato que destaca entre a sua oferta aqui é precisamente a cavala com lima, batata-doce, e salada de tomates com abacate. E, felizmente, graças ao trabalho de divulgação que a Docapesca e vários chefs têm feito com a cavala, agora já pode chamá-la pelo próprio nome.
Henrique Sá Pessoa – Gamba do Algarve
É a primeira vez que Sá Pessoa está presente no Peixe em Lisboa com o Alma (uma estrela Michelin) e quis trazer alguns pratos do menu Costa a Costa, no qual trabalha o melhor que o mar português oferece, além de outros do seu mais recente espaço, o Tapisco. O produto que elege são as gambas do Algarve que apresenta num prato, a gamba ao alhinho, em que brinca com a tradicional gamba “à guilho”. Agrada-lhe este marisco sobretudo pela textura (serve-o praticamente cru) e o sabor delicado, com uma leve doçura. Por cima coloca-lhe uma espuma de alho com duas ou três gotas de picante.
Hugo Brito – Lingueirão
Para Hugo Brito, do restaurante Boi-Cavalo, em Alfama, é a estreia absoluta no Peixe em Lisboa e para ela criou até t-shirts que toda a equipa veste, negras com letras a cor-de-rosa em que o Boi abandona o cavalo e passa a emparelhar com a cavala, como se impõe num festival de peixe. Entre os muito pratos que tem – entre os quais um dos maiores sucessos do festival, as pipocas de lula, picantes e com um molho de tinta de choco –, escolhe o lingueirão, um marisco que gosta de trabalhar, com uma carne bem estruturada e que aguenta sabores fortes como os que aqui usa: miso e beterraba (porque o lingueirão, apesar de vir do mar, integra-se bem com sabores muito ligados à terra, como é a beterraba), terminando com trigo-sarraceno para lhe dar o toque crocante.
António Barros (Chef Kiko) – Polvo
Com Kiko Martins ausente em trabalho para um programa televisivo, é o chef António Barros quem nos recebe no espaço do Chef Kiko. E como produto de eleição escolhe o polvo, que é aqui apresentado num quinoto, um prato servido na Cevicheria, um dos restaurantes de Kiko em Lisboa, inspirado pelo risotto mas usando como base um produto tipicamente latino-americano, a quinoa. Esta é cozinhada como o arroz do risotto e finalizada da mesma forma, para ficar aveludada e, neste caso, é acompanhada por polvo (na Cevicheria o prato é feito com peixe). António Barros diz que trabalhar o polvo é “fácil”, o fundamental é não o deixar borrachoso, mas cozinhado no ponto não tem como falhar, garante.
Milton Anes (Arola) – Pescada
Outro restaurante com estrela Michelin presente no Peixe em Lisboa é o Arola, do Penha Longa Resort. Não é o chef catalão Sergi Arola que encontramos no espaço (embora tenha vindo ao festival fazer uma apresentação da sua cozinha), mas sim o seu braço direito em Portugal, Milton Anes. E é ele quem escolhe o prato e o produto que quer destacar: a pescada de anzol com espinafres, caril e amêndoas. Já na edição do ano passado este prato foi um dos maiores sucessos do Arola e Milton orgulha-se da simplicidade de sabores que aqui apresenta. Longe da ideia de que a pescada é um peixe para quem está doente, esta destaca-se por um lado por ser de anzol e por outro pela delicadeza com que é cozinhada, que a deixa com uma textura extraordinária. Não é um peixe que aguente sabores demasiado intensos ao lado, mas os acompanhamentos aqui estão ao serviço da pescada e com um resultado surpreendente.
Paulo Morais – Alfonsino
Na bancada à frente do sushiman Paulo Morais estão vários peixes pousados sobre o gelo. Paulo vai pegando neles e preparando-os em sashimi, para o sushi ou para os restantes pratos que trouxe para o festival saídos da carta do restaurante Rabo d’Pêxe, em Lisboa. Quando lhe pedimos para escolher um, opta pelo alfonsino, vermelho, olhos grandes, ar fresquíssimo. Acha que é um peixe pouco valorizado em Portugal (onde existe nas águas dos Açores) porque fica sempre à sombra do seu “primo” mais popular, o imperador. No festival, os clientes têm a mesma opção que no restaurante: escolhem o peixe (o alfonsino ou outro) e este é cozinhado de três maneiras, uma parte é utilizada para fazer sushi e sashimi, a outra para grelhar e a cabeça para fritar.
André Magalhães – Sames de Bacalhau
Apesar de muita gente vir ao espaço da Taberna da Rua das Flores para as já célebres pataniscas e para outro dos best-sellers deste ano, o bao de caranguejo de casca mole, o prato que André Magalhães destaca é o Tripas Mar e Monte, em que junta dobrada com grão pequeno, português, e o sames, que é a bexiga natatória do bacalhau, uma parte do peixe que os portugueses sempre souberam aproveitar e que tem, explica André, imenso colagénio, o que acrescenta ao prato um saboroso lado gelatinoso. É um ingrediente que gosta de trabalhar precisamente pela forma como se integra facilmente num prato de carne e por essa gelatina natural. Além disso, acrescenta, o sames é um órgão fascinante, que pode expandir-se e contrair-se, ajudando o bacalhau a manter-se em profundidade ou a nadar para cima.
Pascal Meynard – Cavala
Prova de que a cavala já se impôs (ver a conversa anterior com Bertílio Gomes) até na alta cozinha é o facto de o chef do Ritz, Pascal Meynard, a ter também na sua oferta e de a escolher como produto que lhe agrada particularmente trabalhar. Francês, confessa que no seu país nunca tinha trabalhado com cavala, um peixe que começou a descobrir desde que está em Portugal. Refere também a textura firme e o sabor, mais intenso do que outros peixes do mesmo género, como factores que dão à cavala uma personalidade interessante. Para equilibrar esses sabores fortes do peixe, apresenta-o levemente fumado e usa aqui vários elementos que contribuem para o prato de formas diferentes, nomeadamente com a acidez, como os pickles ou o gel de limão, a que se junta a pimenta d’Espelette (famoso produto francês) e um bolo-esponja feito de camarinha.
João Pedro Pedrosa – Garoupa
O chef do Ibo, o restaurante situado à beira do rio, em pleno Cais do Sodré, em Lisboa, olha para a carta que tem no Peixe em Lisboa em que se destacam as famosas puntillitas em molho de citrinos e coentros ou as muito procuradas chamuças de peixe com chutney de banana-maçã e acaba por escolher o caril de garoupa com coco e manga seca. Depois explica o que é evidente só de olhar para a carta: a cozinha do Ibo mistura os peixes e o marisco portugueses com os sabores da cozinha de Moçambique, com as suas fortes influências indianas. É, por isso, um restaurante que conta (parte) da história dos portugueses no mundo. A escolha do caril tem a ver com o facto de a garoupa ser um peixe que, pela sua textura firme, aguenta bem esta conjugação de sabores que tem no coco a nota de doçura e no pickle de manga seca (o achar) o pico de intensidade de sabor.
Helder Chagas – Prazeres de Tróia
Ao chegarmos ao último espaço de restauração, o Ribamar de Helder Chagas (o único que esteve presente no Peixe em Lisboa ininterruptamente desde a primeira edição), encontramos o mar na sua maior simplicidade. Helder nem hesita quando lhe pedimos que escolha um prato. Aquele que sugere está à sua frente e foi baptizado como Prazeres de Tróia. Cheira a mar e foi isso precisamente que Helder quis trazer para o centro de Lisboa – o cheiro a mar dos melhores produtos que serve nos seus restaurantes (Sesimbra e Tróia). Explica que com produtos tão frescos, o mais inteligente a fazer é servi-los na sua pureza e não tentar transformá-los com cozinhados complicados. Assim, temos ouriços (todos os anos há uma corrida dos ouriços do Ribamar durante o festival), pés-de-burro, burriés e camarão da costa.