Espírito Santa, abençoada Amazónia
Quando, há doze anos, Natacha Fink se preparava para abrir o seu restaurante Espírito Santa, no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro, fez um catering para mostrar a sua comida e recebeu muitos elogios. Mas, se isso a animou, houve algo que a deixou apreensiva. Algumas pessoas aconselharam-na a não dizer que trabalhava com produtos da Amazónia. "Disseram-me que seria estigmatizada", conta.
Há doze anos, a cena gastronómica no Rio era muito diferente. Hoje — e sobretudo depois do trabalho desenvolvido pelo mediático chef Alex Atala com produtos da Amazónia — as coisas mudaram. Mas Atala está em São Paulo e, para quem quer descobrir o pirarucu, o jambu, o tacácá, o cupuaçu e outros sabores daquela região, o Espírito Santa é uma das grandes referências.
Ex-jornalista, Natacha, "amazonense de Manaus", fez um dia um trabalho sobre receitas tradicionais e percebeu que o que queria realmente explorar era a comida.
"Em tudo o que fiz ao longo da vida tinha uma necessidade muito grande de me expressar, de mostrar a minha visão do mundo e vi que a cozinha podia proporcionar-me isso, vi que era o jeito mais autêntico de mostrar essa Amazónia que eu vivi", conta, sentada a uma mesa do Espírito Santa, à qual acabam de chegar uns bolinhos de tapioca com jambu, a planta da Amazónia que nos deixa uma leve dormência na boca.
Enfrentou o "preconceito e o desconhecimento" que existia em relação a Amazónia. “No início, tinha pessoas que vinham aqui, olhavam o cardápio todo, pirarucu, cupuaçu, falavam ‘Não tem uma comida normal? Um peixe normal? Um namorado?'".
Natacha descobriu uma solução. "Passei a chamar namorado a todos os pratos de peixe: namorado da viúva, da coroa, da sereia." E as pessoas gostavam.
São, aliás, dois desses pratos de peixe que Natacha nos aconselha a provar, depois de outra entrada de patinhas de caranguejo de água doce do Pará com molho de ostra. Vem um "descansadinho", que é um filete de tambaqui, um peixe da Amazónia, aqui servido sobre banana e caldo de tucupi (sumo da mandioca brava). E um pirarucu com crosta de castanha do Pará.
"Queria propor-vos um desafio", diz Natacha. "Vamos tomar um vinho português que eu amo, a acompanhar a comida da Amazónia." Pede que tragam o Encruzado de Juliana Kelman. "A nossa primeira preocupação era trabalhar com cachaça e depois com cervejas alternativas. O vinho era uma coisa difícil há 12 anos no Brasil. Não havia tanta opção de vinho brasileiro de qualidade, mas quando, no ano passado, conheci o vinho da Juliana, pensei logo que combinava muito bem com tucupi.”
A persistência de Natacha deu frutos. Hoje, passados 12 anos, "tudo o que tem a ver com a Amazónia é muito natural, o carioca já acha que é o dono do açaí e já se vêem peixes da Amazónia nas grandes redes de supermercados". Tal como antes o Brasil descobriu a cozinha mineira ou baiana, agora "está a descobrir a Amazónia".
E isso tem um lado muito importante: "A preservação da Amazónia depende da nossa capacidade de valorizar os produtos da região. Não podemos imaginar que a Amazónia vai virar pasto de gado. Se você consome o que a floresta te dá, vai estar preservando a floresta, se come os peixes que vêm dos rios da Amazónia, precisa de preservar o entorno dos rios. Acredito muito que a coisa é por aí."
A boa notícia, de acordo com este princípio, é que a preservação da floresta amazónica é uma tarefa deliciosa à mesa do Espírito Santa. Ela passa, por exemplo, por um chuchu no xinxin, um prato de chuchu e outros vegetais da estação refogados com creme de gengibre, amendoim, castanhas de caju e ervas frescas, uma polenta serrana de fubá orgânico da serra Fluminense com ragu de shitake e alho francês; um filé de tucunare recheado com farofa de palmito de pupunha empacotado em folhas sobre creme de banana da terra aromatizado com mangarataia; ou um filé de frango empanado com crosta de castanha de caju com molho cremoso à base de cajuína. É com estes e outros pratos que Natacha Fink nos conta, num dos bairros mais bonitos do Rio de Janeiro, essa Amazónia que conhece tão bem.
Da Bela para todos
O que é que não existe no Da Bela, o restaurante de Bela Gil no Rio de Janeiro (com duas unidades, uma na Barra da Tijuca e outra no Arpoador)? Bela Gil pensa durante alguns segundos e conclui: "Não temos hambúrguer de carne, mas a pessoa pode sempre pedir outro prato." De resto, diz, há de tudo. Serve-se carne, mas é orgânica, tal como a maior parte dos ingredientes, embora não 100%.
A filosofia do Da Bela é servir comida saudável — e este é um nicho de mercado que está em crescimento em cidades como o Rio e São Paulo (Alex Atala acaba de abrir o Bio – Comer Saudável, que pretende ser não apenas saudável mas sustentável, acessível e trabalhar com pequenos produtores). "O que a gente preza é comida de verdade", afirma a chef e nutricionista, filha de Gilberto Gil. "Não tem caldo pronto para fazer o feijão, não tem extracto de tomate de lata, a gente faz o nosso próprio molho."
Júnior, que nos recebe no Da Bela, traz uma bebida de boas-vindas feita com espumante brasileiro biológico, espuma de açaí e nibs de cacau, explicando que, apesar de não ser uma receita de Bela Gil, "representa muito bem o espírito dela".
O couvert inclui pão de amêndoas e iogurte (ambos sem glúten) e focaccia, tofu com azeitona preta, queijo de amêndoa e hummus feito com beterraba ; vem depois salpicão de frango biológico em que a maionese é substituída pelo abacate e a batata-palha é feita com batata baroa, variedade muito comum no Brasil; um guacamole com toque brasileiro dado pela pimenta baniwa e chips de banana da terra; um bolinho de feijoada vegetariano com tofu fumado. Provamos ainda uma moqueca com arroz vermelho integral e um picadinho de carne orgânica com puré de batata baroa e molho de tucupi.
"O meu restaurante é muito inclusivo", afirma Bela Gil. "O que acontece normalmente a quem é vegetariano ou quer uma comida saudável é que se sente excluída na maioria dos restaurantes. Eu e o meu marido, quando viajamos, temos que levar comida de casa. O problema do mundo de hoje é a padronização, de tudo, incluindo a comida". O Da Bela quer ser diferente, sem ser fundamentalista e sem excluir ninguém.
A elegância suave do Tuju
Nas fotografias tiradas durante um almoco no Tuju, o restaurante de Ivan Ralston em São Paulo, que conquistou uma estrela Michelin ao fim de poucos meses de existência, a primeira coisa que salta à vista é a preocupação estética em cada prato. Há nas imagens uma elegância suave que nos transporta de volta à mesa virada de frente para a cozinha aberta, em que podemos observar todo o serviço, que decorre calmamente, como uma máquina bem oleada, sob o olhar atento de Ivan.
Vindo de uma família ligada à restauração — os pais, Roberto e Liane Bielawski, são os sócios fundadores da rede de restaurantes Ráscal —, Ivan começou por se dedicar à música, que estudou na universidade de Berkeley, em Boston, antes de, aos 20 anos, decidir que o seu caminho era a cozinha.
Passou pelo restaurante Maní, de Helena Rizzo, em São Paulo, e viajou depois para Espanha, onde estagiou em alguns dos melhores: El Celler de Can Roca, dos irmãos Roca, e Mugaritz, de Andoni Aduriz. Seguiu-se o Japão, com passagem pelo RyuGin, e o regresso ao Brasil para, em 2014, abrir o Tuju, que recebe o nome de um pássaro brasileiro típico da Mata Atlântica do interior do estado de São Paulo.
O que Ivan quer mostrar no Tuju é precisamente a variedade de ingredientes que se pode encontrar na região de São Paulo, vindos preferencialmente de pequenos produtores e da horta que o restaurante tem na parte superior (e que pode ser visitada). O resultado são os tais pratos que pedem para ser fotografados, como os do menu vegetariano que provámos e que começava com uma salada de nabo, apresentada como uma flor de pétalas rosa num caldo de leitelho com vinagrete de mel.
A frescura e acidez deste primeiro prato vai passar nos seguintes para sabores mais próximos da terra e do conforto. Depois de ficarmos literalmente a lamber os dedos com um croissant recheado com coral de milho verde que nos chega na cesta dos pães, passamos para um tártaro de beterraba fumada com iogurte caseiro e crocante de pão, seguida por uma sopa de cogumelos com ovo caipira e vinagre de jabuticaba (árvore de fruto da Mata Atlântica), para terminar num prato de absoluta simplicidade, um trio de tubérculos composto por três variedades de batata (doce, roxa e amarela), em rodelas dispostas também em flor, com maionese de café e flor de sal de hortelã.
E, para não sairmos do registo de comida de conforto, o menu termina com uma levíssima rabanada, a desfazer-se na boca, com sorvete de paçoca (doce tradicional à base de amendoim e farinha de mandioca) e caramelo salgado.
Com os menus a mudar de duas em duas semanas (há três menus à escolha, um de três pratos, outro de cinco e um maior, de 12) e, obviamente, uma ligação à sazonalidade, o Tuju — que se encontra entre os 50 Melhores Restaurantes da América Latina — fala-nos deste São Paulo que vai da riqueza da Mata Atlântica às muitas influências de imigrantes vindos de vários pontos do mundo — e fá-lo sem nunca ser estridente, com delicadeza, simplicidade e sensibilidade.