Fugas - Viagens

Aga Khan/Reuters

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O caos e a eternidade no Egipto

Quando se atravessou a barragem de Nag Hammadi, paisagem de intensa beleza bucólica, os olhares convergiram todos lá para fora. Pela nossa parte não fizéramos outra coisa. E as duas horas que leva chegar a Abido passaram depressa a observar a paisagem: casas de taipa e outras em tijolo e varandas pintadas de cores claras, lugares onde se faz olaria, árvores pejadas de garças, trabalho da terra antes da mecanização, carroças puxadas por burros, homens garbosos sobre camelos, crianças a acenar, pombais (o pombo é uma iguaria local). Nalgumas fachadas de casas o seu proprietário assinala com um desenho gigante a sua ida a Meca, incluindo o meio de transporte usado, o avião, por exemplo - a comunidade é informada e o peregrino recolhe maior respeito geral.

Em Abido, onde Osíris foi venerado, há para ver os cenotáfios dos faraós Seti I e Ramsés II (século XIII a.C., XIX dinastia) muito bem conservados e com belíssimos hieróglifos nas paredes de calcário, de um traço suave como não vimos em nenhum outro sítio. A importância de Abido para Tinis, de onde é originária a primeira dinastia faraónica, era equivalente à de Sakara, junto ao Cairo, para Mênfis (capital até à XVIII dinastia), ou à de Meca hoje em dia. Reza a lenda que Osíris, despedaçado pelo irmão Set, e cujo corpo foi amorosamente refeito por Ísis, recolhida cada parte, terá a cabeça sepultada em Abido. µ

O cenotáfio de Seti I, ou falso templo funerário, já que foi local de culto com o soberano ainda em vida, visou prestar culto a Osíris, mas também ao próprio Seti I e nesse sentido afirmar e alardear o seu poder. Seti I pode ser visto a fazer oferendas a Osíris e a ser coroado pelos deuses (na chamada "sala hipostila"). À saída do santuário de Osíris há uma particularidade que são sete capelas (três à sua direita e quatro à sua esquerda) dedicadas a Hórus, Ísis e Osíris; e a Amon-Ré, Ré-Horakhti, Ptah e ao próprio Seti.

Junto à entrada da capela de Ísis surge uma imagem de terna beleza, com Ísis a segurar o queixo do seu filho Hórus. Pela esquerda destas capelas acede-se à chamada "Galeria dos Reis", onde toda uma parede, preciosa para os egiptólogos, ostenta os nomes dos faraós do Egipto até Ramsés II. Bom, mas nem todos lá figuram. Há os ausentes, tal como não há menção de derrotas nas narrativas de batalhas deixadas nas paredes de templos - donde, já no Egipto Antigo se praticava a releitura da História. 

Aqui, como nos demais templos, túmulos e pirâmides do Egipto Antigo, para lá da solene beleza de uma arte pensada para perdurar e permanecer oculta (os túmulos deviam ser encerrados após ocupados por aqueles a que se destinavam; aos templos muito poucos acediam), coloca-se a questão de saber como foram erguidos, cortada e transportada a pedra que os fez.

Os especialistas avançam algumas hipóteses: o corte seria feito com recurso a estacas de madeira e água e o Nilo seria o meio de transporte. Interessante é pensar que na Europa se erguiam monumentos megalíticos, enquanto a requintada arte funerária do Egipto Antigo era pensada para o além, ou seja, para sempre. Esta civilização, que dominou a arte da pedra como nenhuma, não deixou as casas que habitava, mas é indiscutível que alcançou o seu desígnio de construir para a eternidade.

O Nilo

Voámos para Assuão ao terceiro dia da viagem em busca dos templos mais famosos e mais procurados, mas também para fazer a experiência do Nilo. Descemo-lo de barco de Assuão até Luxor.

O Nilo, alimento essencial do Egipto, é uma experiência ímpar. Nas suas margens, cor da areia do deserto, ou verdejantes, a vida decorre, como um regresso a gestos antigos, de sempre. Figuras em trajes coloridos ou em tons de terra ocupam-se na agricultura ou na pesca. O perfil de camelos congrega o olhar e para quem vem de fora é algo novo que passa a ser familiar. É na proximidade do rio que existe a terra arável, apenas cinco por cento, que possibilita o crescimento de que o país tanto necessita, sendo o restante território deserto. 

Na descida do Nilo foi-se estabelecendo uma rotina que consistia em abandonar o barco-hotel em dois barcos a motor, ornamentados com bandeirolas e os mais variados símbolos de marcas de refrigerantes, para alcançar terra e ir em demanda dos templos e túmulos faraónicos.

Na ilha de Filae, localização mágica para o templo de Ísis, por sorte o grupo teve a ilha quase por sua conta. Infelizmente teve de partilhar os espantosos templos de Abu Simbel, escavados na rocha, com hordas ruidosas de outros turistas e após uma madrugada que nos levou até lá ao cabo de três horas de autocarro em estrada pelo deserto. Abul Simbel, que Ramsés II ergueu, entre outros motivos, para assinalar o seu domínio da Núbia, é um milagre de construção a que se sucedeu outro milagre nos anos 60 do século XX e que foi a sua trasladação 200m mais para cima, 64m mais para trás devido à construção da segunda barragem de Assuão. Há quem chegue a Abu Simbel de avião ou de barco, o que será sem dúvida mais suave do que a nossa viagem rodoviária, cujo momento de encanto foi o nascer do sol do chão do deserto numa bela sucessão de cor, apesar dos olhos pesados de sono. O tépido veludo da noite de Assuão, à beira Nilo, também nos compensou da canícula do dia.

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