Fugas - Viagens

Aga Khan/Reuters

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O caos e a eternidade no Egipto

Nas paredes espalham-se ícones pintados, de um traço naif que lhes acrescenta beleza, sendo exemplo da arte cristã egípcia (os artistas eram os próprios sacerdotes). A Basílica Suspensa causou algum frisson por ter sido erigida sobre os muros da antiga fortaleza romana - o que era visível em mais de um local através de fracções de chão em vidro por onde toda a gente quis espreitar o abismo. Esta fortaleza cercava a Babilónia do Egipto e mais tarde foi recuperada pelos bizantinos.

Os traços da diáspora judaica pudemos vê-los na sinagoga de Ben Ezra, hoje edifício público, sem culto. Tem belos trabalhos em madeira, designadamente o seu tecto. No plano superior, destinado às mulheres, existem uns arcos pintados evocadores da mesquita de Córdova.

Feitas as visitas o grupo dispersou-se pelo bazar, no fundo uma grande loja, onde a novidade foi poder fazer compras sem a inevitável discussão à volta dos preços. Agora que já tínhamos a escola toda...

Mas a oportunidade de aplicar conhecimentos empíricos e umas palavrinhas em árabe não tardou. Fomos deixados à solta junto à praça Hossein e à mesquita com o mesmo nome, um dos possíveis pontos de acesso ao bazar Khan Al-Khalili, em pleno Cairo islâmico. O bazar estende-se por ruas e ruelas onde se vendem roupas, especiarias, perfumes, peças em cobre, em prata, em plástico... A mercadoria está exposta na rua à entrada de lojas, algumas com balcão de madeira pintada de cores claras, a fazer lembrar um certo Portugal anos 60. 

Belíssimo é o café Fishawi, com enormes espelhos de molduras de madeira escura, onde Naguib Mahfouz, Nobel da Literatura de 1988, foi presença frequente. Vimos mulheres sentadas às mesas e não eram só estrangeiras.

Nessa noite tivemos a nossa experiência de "mil e uma noites", pois o jantar foi no restaurante Al-Azhar, evocador de um palácio do Al-Andaluz, em madeira e pedra. Fica num ponto alto, num parque com o mesmo nome, e daí avista-se um belo e extenso panorama que abrange a mesquita Mohammed Ali, também conhecida como "Mesquita de Alabastro", na Cidadela. Este parque, e continuávamos no Cairo islâmico, foi inaugurado em 2005 e resultou da recuperação de uma lixeira municipal centenária, com o apoio do Fundo Aga Khan para Programa Cultural de Cidades Históricas. 

Aquilo que se designa por Cairo islâmico corresponde ao Cairo medieval, incluindo o seu cemitério, junto ao qual passámos nas diversas idas e vindas. É habitado, sendo inusitada a visão de semelhante lugar ornamentado com parabólicas ou um velhote de turbante, a acenar, sentado num sofá no passeio junto a um dos seus portões.

Há um Cairo mais cosmopolita, não longe do Museu Egípcio, e onde grandes hotéis se erguem junto aos braços largos do Nilo, nesse ponto da cidade, mas confessamos a nossa falta de entusiasmo com essa zona do Cairo. Agradável à vista, mas incaracterística.

O lendário trânsito cairota

Além das pirâmides, o Cairo é famoso pelo seu trânsito em estado de caos. O que vimos e experimentámos não desmerece a reputação. Não pára dia e noite e só lentamente flui. Nele convivem todo o tipo de meios de transporte - automóveis e autocarros mais velhos do que novos, carrinhas, camelos e burros. Há longas filas de homens e mulheres a procurar fazer parar e usar uma dessas carrinhas no regresso a casa, o que pode levar pelo menos duas horas entre descobrir a que serve o destino e tem lugar. Pode acontecer que no meio do frenesim geral um velho de turbante atravesse calmamente uma ponte escarranchado num burro e levando à garupa uma menina de totós e mochila colorida vinda da escola. Ou verem-se transeuntes a traçar com sabedoria ângulos rectos por entre os veículos quase parados que é o método local para atravessar as vias.

No interior dos carros cada um cria o seu ninho e a regra é atapetar os tabliers com pelúcia, às vezes cor de cinza, às vezes vermelha, e vestir os encostos de cabeça dos bancos com figuras como o Piu-Piu ou o Rato Mickey de nariz e orelhas salientes. Depois ainda há a buzina: num só veículo escutámos três - uma para pedir passagem, outra para agradecer e a terceira para ralhar. Todas muito festivas.

Os 18 milhões que habitam a área metropolitana da capital egípcia parecem deslocar-se sem cessar, num país que cresce à razão de um milhão e oitocentos mil por ano (87 milhões de habitantes). Não surpreende que o trânsito espelhe afinal essa pressão demográfica e que não haja seguros automóveis. Surpreende, isso sim, é que não ocorram acidentes a par e passo.

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