Fugas - Viagens

Aga Khan/Reuters

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O caos e a eternidade no Egipto

Ao pôr-do-sol escapámo-nos do nosso próprio grupo e sentámo-nos a olhar o rio, a recolher interiormente alguns sinais do mundo dos templos, tão intenso quanto enigmático. A tarde tivera outro brinde: um passeio de faluca, à vela, escutando apenas o ranger das cordas, olhando os azuis, os recantos de água, pedras, pássaros e vegetação. O idílio com o rio não dura é lá muito, pois os miúdos que vivem à sua beira depressa descobrem a fonte de eventuais moedas e remam em pirogas toscas com pouco mais do que as mãos, dispostos a cantar na língua que for preciso ou exibindo colares que de falso apenas têm o desejo de adquirir bom e barato. 

O recolhimento, pese embora o cenário ideal para o efeito, foi pois luxo raro nesta expedição ao Egipto tão bem organizada quanto intensa. E lá prosseguimos em direcção à foz do Nilo, rumo a Luxor.

Nos templos de Luxor e Karnak - que as autoridades egípcias estão a procurar voltar a ligar, como concebidos na origem, numa longa e morosa operação de desalojamento e realojamento dos que vivem na rota que por enquanto ainda separa os dois monumentos -, lá voltámos a dissolver-nos nas centúrias de turistas. Karnak, "O mais Perfeito dos Lugares", no auge do poder de Tebas (antigo nome de Luxor), é esmagador pelo muito que alberga e pelas suas dimensões. De resto, esmagados foi como nos sentimos ao percorrer a inóspita e extensa montanha de Tebas, ou seja, os vales dos Reis, das Rainhas e dos ditos "Nobres" (na verdade, artistas e funcionários), em visita aos túmulos. Esmagados estávamos pois pelo lugar, pela concepção e minúcia dos túmulos visitados e pelas temperaturas a rondar os 40 graus às 10h de um começo de Primavera. 

No vale "dos Nobres" imaginámos como seria viver e trabalhar ali, no tempo dos faraós. Duro, no mínimo. Artistas e respectivas famílias habitavam em casas neste vale, na aldeia dos artistas, Deir-el-Medina, por detrás dos vales dos Reis e Rainhas, e ficaram registados em placas de cerâmica aspectos do seu quotidiano, como relatórios sobre ausências ao trabalho e respectiva justificação. Houve alguém que levantou suspeitas por ter usado por três vezes o mesmo motivo para não comparecer ao trabalho - morte da tia... Foram também estes trabalhadores os primeiros a fazer uma greve de que há registo. Exigiram o pagamento que consideraram ser-lhes devido e obtiveram-no. 

Neste vale os túmulos são modestos na aparência, mas profusamente decorados no seu interior. Um dos túmulos mais ricos na decoração e na informação sobre os rituais de passagem para a outra vida e sobre a própria vida do defunto, logo sobre o seu tempo, é o de Sennefer, que foi governador do Egipto durante o reinado de Amenhotep II (séc. XV a. C., XVIII dinastia) e tinha sob a sua guarda três milhões de pessoas. Entre outros pormenores, no seu túmulo há o registo da peregrinação do defunto a Abido.

Perto dali uma equipa de arqueólogos franceses trabalhava à sombra sob um alpendre-tenda. Quem deles se aproximou levou uma corrida em osso. Se fossem a atender todos os turistas que por ali passam...

Já em Sakara havíamos observado uma equipa em que um arqueólogo local, ao sol, dirigia um grupo de trabalhadores que carregavam pedras à mão, enquanto um jovem erguia a bandeja com chá e copos. No tempo de Howard Carter, que no início do século XX deu finalmente com o túmulo do famosíssimo Tutankamon, não devia ser muito diferente.

Vários Cairos, uma Babilónia

E voltámos ao Cairo, onde voltámos a ser acordados pelo almuadem, que chama para a oração, como vinha acontecendo em todos os lugares, tornando familiar aquele chamamento, algo exótico de início. O único senão é a abundância de mesquitas na cidade e o caos horário que as regula. Assim, há uma chamada à oração às 4h, outra às 4h30, outra às 4h40... Decididamente, o Egipto não é lá grande sítio para dormir. Talvez isso explique a pontualidade do enorme grupo à partida para as visitas.

Em Guiza, lá voltaram também as pragas do Egipto, pois então. Chusmas de turistas e vendedores e "passeadores" - a cavalo ou de camelo querem à viva força convencer-nos que nos passeiam por um euro; uma vez que nos apanhem montados no bicho, o preço também vai por aí acima. Os polícias, nuns uniformes excessivamente quentes para o clima, contemplam aquilo tudo placidamente, talvez com uma pontinha de inveja dos "empresários". Estas figuras coloridas e imparáveis animam ou perturbam, consoante a perspectiva, o cenário poderoso que são as pirâmides - as suas dimensões e a sua construção são espantosas, sobre-humanas. Estar ali é uma experiência única.

Mas nem só de pirâmides e respectiva fotografia vive o turista, já que o Cairo lhe reserva bastantes surpresas. No Cairo há uma Babilónia - a Babilónia do Egipto. Expliquemo-nos: em 525 a.C., os persas edificaram um forte a norte de Mênfis, ao qual chamaram Babilónia no Nilo. Os romanos voltaram a conferir importância a este forte e à chamada Babilónia do Egipto, à volta da qual cresceu um importante centro do cristianismo, que em finais do império viu nascer a Igreja copta, tal como foi acolhendo uma diáspora judaica em períodos sucessivos. Os testemunhos desse tempo permanecem no bairro copta, o chamado "Cairo pré-islâmico". 

Neste bairro de ruas estreitas tem-se a sensação de estar num "parque histórico", deixando do lado de fora o Cairo actual e ruidoso. Dentro dos templos cristãos há menos novidade, mas não menos beleza. Na Basílica copta de S. Sérgio - onde, reza a lenda, teria estado a Sagrada Família, era o Egipto uma província do império romano -, o altar-mor ostenta um magnífico trabalho de madeira com relevos e incrustações.

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