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Madrid é uma festa e está toda na Gran Vía

Por Andreia Marques Pereira

Respirou sempre o "ar do tempo" e por isso nunca deixou de ser um símbolo maior da capital espanhola, vivido intensamente. Ousadia urbanística, montra arquitectónica, passarela cosmopolita, a Gran Vía cumpre cem anos e continua a ser o que sempre foi. Incontornável

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"Gran Vía es una maravilla". Não rima. "Diz-se de Sevilha", esclarece Juan Pedraz, "mas para mim é o mesmo". Se calhar, a inspiração é futebolística (há dois meses, quando percorremos a Gran Vía, "Villa maravilla" era um mantra das conversas de café em Madrid), porém a convicção está lá, enquanto Juan Pedraz sobe a Gran Vía na direcção da Praça de Espanha, numa noite de domingo. Juan, 28 anos, é salamanquino de origem, madrileno por convicção e a Gran Vía não lhe guarda muitos segredos. "É o centro nevrálgico, descobres tudo aqui. Tem edifícios bonitos e com história. É cosmopolita...". 

Há ruas assim, que parecem definir o espírito de uma cidade, tantas vezes de um país. Por exemplo, Paris tem os Campos Elísios, Nova Iorque tem a 5.ª Avenida, Madrid tem a Gran Vía. Por isso, ir a Madrid e não passar pela Gran Vía é uma espécie de pecado capital, mas também é virtualmente impossível. 

Ainda assim, por estes dias os autocarros da cidade circulam com a sugestão de a visitar: a Gran Vía faz cem anos e todos estão convidados para a festa. Os que a visitam e os que fazem dela uma festa permanente. Porque se Madrid é uma "fiesta", Madrid está toda na Gran Vía.

E isso merece mais do que um simples parabéns - por isso, 2010 é o ano homenagem. Os parabéns formais foram a 5 de Abril, embora tenha sido a 4 de Abril de 1910 que se iniciou a sua construção. Que começou com a destruição: o rei Alfonso XIII deu o primeiro golpe de picareta no primeiro edifício (e foram 300) a ser derrubado para rasgar a cidade de Madrid - para trás ficava o passado, feito de um emaranhado de ruas quase medieval, e abria-se o futuro, à boleia da grande avenida que viria unir a Calle Alcalá à Praça de Espanha. A 5 de Abril de 2010, foi o rei Juan Carlos, neto de Alfonso XIII, quem reinaugurou a avenida descerrando um monumento comemorativo, símbolo da modernidade madrilena.

Há poesia na rua

Nesse dia, não passaram carros nas inúmeras faixas da Gran Vía e a sua banda sonora habitual de trânsito incessante emudeceu. Porque a multidão ocupou a rua. Vazia de vida é que só terá acontecido mesmo no cinema - Alejandro Aménabar colocou Eduardo Noriega a caminhar numa Gran Vía deserta em Abre los Ojos. Foi em 1997, e nessa altura Enrique Bayano já tinha sido condutor, soldador, cozinheiro e por aí fora. Dois anos antes, encontrara o seu sítio na Gran Vía, onde o encontramos 15 anos depois. 

Na montra da Casa Del Libro anuncia-se o "grande seller" de Antonio Salas, El Palestino, cá fora oferece-se poesia. "Te regalo mi poesia por voluntad". A deixa é ensaiada, a poesia não é original - já saiu, por exemplo, na revista Think Spanish, que Enrique mostra como certificado da sua existência: "o único poeta de rua de Madrid". Há 15 anos que não se mexe "daqui". "É a Gran Vía. Amo. Sou madrileno". E "ser español es un orgullo, pero ser madrileño es un titulo" - afinal, "de Madrid al cielo con una escada corta". E a escada tem de passar pela Gran Vía: "Mudou muito. Antes, era clássica...". Agora, é moderna: "a Mango", aponta, "era uma cafetaria". "Na Plaza de España eram só cafetarias e bares. Agora, até à Montero não há cafetarias". Mantêm-se os portais, "muito bonitos", e "o edifício da Telefónica [na foto ao lado], que em 1939 foi o primeiro arranha-céus europeu". 

Encontramos o edifício Telefonica muito perto de um dos extremos da Gran Via, quando se sobe a partir da Calle Alcalá. A Calle de Fuencarral, rua de vocação comercial, desemboca ali e do outro lado é a Calle Montero, que abre um carreiro de prostituição até à Puerta do Sol - "quiseram tirá-las [as prostitutas] de lá, mas não conseguiram", conta Juan Pedraz, e agora é quase uma atracção turística underground.

Como são os "heavies da Gran Vía", arraiais assentados ali ao lado, oposto à Telefónica. Tinham-nos assegurado que ali estariam: os gémeos Alcázar, casacas de cabedal, cabelos despenteados e botas, "metaleiros-punks" (com séquito gótico) saídos directamente dos anos 80, com direito a grupo de fãs no Facebook. Isso descobriríamos depois. Aqui descobrimos que é o rock que os faz permanecer à saída da estação de metro que já foi conhecida como "Madrid Rock", contam. Porque a loja Bershka que ali se ergue já foi a loja Madrid Rock, meca dos amantes de música exigente. Quando o ícone musical sucumbiu ao grupo Inditex (e vamos ouvir esta história muitas vezes), em 2005, nasceram estes outros ícones, inconformados com a orfandade. "Vamos ficando...". Bebendo coca-cola e tirando fotografias com quem pede e são muitos os que se atrevem de entre a multidão que todos os dias se acotovela acima e abaixo em harmonia poliglota.

Alvo dos nacionalistas

E voltamos à Telefónica, edifício que cresceu entre 1926 e 1929 (até aos 90 metros), e que foi um dos alvos privilegiados dos nacionalistas que cercavam a capital no início da Guerra Civil espanhola (nesses dias, em que manifestantes a percorriam gritando "Los fascistas no pasarán", a Gran Vía passou a ser conhecida como a "Avenida dos Obuses", tal a quantidade de bombas que ali caíam). 

Por detrás de uma fachada que podia estar em Nova Iorque encontra-se o Laboratório Gran Vía, uma exposição da Fundación Telefónica, que aproveita o centenário para lançar uma reflexão sobre o passado, o presente e o futuro da avenida e o seu papel na capital.

E se o primeiro papel foi pragmático (facilitar o fluir de trânsito na cidade), rapidamente a Gran Vía assumiu outras funções. Era símbolo de status ter uma propriedade aqui e não se pouparam esforços para erigir o edifício mais surpreendente e mais sumptuoso da avenida, tudo para assombrar os visitantes. Tornou-se, portanto, uma feira de vaidades e uma espécie de laboratório de arquitectura - e todas as correntes que emergiram naquele princípio de século aqui confluíram: modernismo, art déco, racionalismo, para citar alguns exemplos. 

O edifício Telefónica acaba por funcionar como uma fronteira informal: quem vem a subir da Calle Alcalá percorre a secção mais ornamentada da rua. Começa logo na esquina com o edifício Metropolis e a sua estátua da Vitória, fulgurante na cúpula negra debruada de dourados - é talvez o mais apreciado na avenida. Um pouco à frente, noutra esquina, o arredondado e alvíssimo edifício Grassy, que já foi de relojoeiros suíços e agora alberga um museu de relógios e, entre outros, o Gula Gula - um restaurante com espectáculos de dança, comédia e travestis. 

Observando de perto os edifícios aqui, descobre-se algo de barroco até nas gárgulas que se repetem nas fachadas. Ainda há vestígios do luxo que já foi imagem de marca da avenida nas joalharias e hotéis de muitas estrelas. Mas, entretanto, a economia de mercado instalou-se: há "recuerdos" no Travel Corner, a "maior pizza de Madrid" na Papizza (que até há pouco tempo tinha kebabs), mojitos e "outros sabores" no Umani e um bar lendário - o Museo Chicote. Dizem-nos que é mítico pela associação à movida madrilena dos anos 80, com a cantora Alaska e o actor Eduardo Noriega entre os clientes (ainda) assíduos. No entanto, a lenda vem de trás - abriu em 1931 e não envelheceu um dia: o cenário de madeira (protegido por lei) é o mesmo por onde passaram Hemingway e Ava Gardner. E perto da lenda, a moda, El Mercado de la Reina, que abriu há poucos anos, ar trendy em todas as suas linhas contemporâneas e pátio interior com oliveiras.

O bolero de Madrid

Passamos o Telefónica, deixamos os excessos arquitectónicos decorativos para trás e entramos no avant-gard. E a lembrar-nos tal, um edifício art déco que se destaca nesta vitrina de arquitectura porque alberga um McDonald"s - fast-food em ambiente dos anos 30 do século passado. O comércio é mais intenso a partir daqui - a Inditex está em todas as frentes, Zara, Mango, Bershka, Oysho, Lefties, há Starbucks e Nike e tantas outras cadeias internacionais -, e inesperadamente tradicional. 

Encontramos o "bolero de Raquel" que é do "rey dell brillo", neste caso, Carlos, mexicano de Monterrey representante de um ofício em vias de extinção: o dos engraxadores de rua. Na caixa antiga e exuberante (bordeaux e creme, forrada a pele com tachas metálicas, almofada) que leva o nome do filme tornado famoso por Cantinflas, Jose Gonzales deixa os seus sapatos terem "tratamento profissional". "De vez em quando precisam". E o de vez em quando é quando o empresário de Burgos passa por Madrid. Vem à Gran Vía de propósito, é um ritual de há anos. "Agora há menos [engraxadores] e são sempre os mesmos". Por três euros, limpa os sapatos com a garantia do "mejor bolero do México/ el mejor limpiabotas de la Gran Vía", lê-se na caixa. 

Carlos é "bolero" na Gran Vía desde há três anos. Em Madrid, "todos os boleros estão na Gran Vía". E "toda a gente do mundo vem aos boleros da Gran Vía, limpar sapatos, casacos...". 

Vêm os clientes habituais e os turistas, "alemães, italianos, holandeses". O problema é a concorrência - "há muitas sapatilhas e chinelos" e "há muitos pedintes". Por isso, Carlos não ocupa sempre o mesmo lugar: no fim das sessões de cinema, está à porta. "As pessoas vão muito ao cinema e quando saem limpam os sapatos".

Estreias de cinema

A tradição do cinema na Gran Vía é antiga - e as estreias em Espanha eram todas aqui, com direito a noites de gala. Tanto que durante a Guerra Civil os bombardeamentos nacionalistas aconteciam muitas vezes no final das sessões. Cinemas, teatros, cafés tornavam a Gran Vía num ponto de encontro social privilegiado. Mas a tradição já não é o que era na Gran Vía. 

Caminhamos um pouco até chegarmos à Plaza del Callao, agora pedonal: El Corte Inglés, Fnac e cinemas - Cines Callao ali, edifício suavemente rosado e rés-do-chão de mármore negro, do outro lado da avenida o Palacio de La Prensa, cartazes pintados a anunciar filmes: Eclipse e Sexo en Nueva York

Houve um tempo em que todos os cartazes na Gran Vía eram assim, pintados - no tempo em que aqui chegaram a coexistir 13 cinemas (agora há três). Madrid ia ao cinema entre o Callao e a Praça de Espanha, mas isso terminou nos anos 90 (das salas gigantescas, o público voou para os centro comerciais) e em 2004 veio a liberalização do uso dos edifícios (esta era uma zona protegida: para manter a coesão histórica e estética da avenida e também a sua utilidade pública), desde que mantenham a estrutura original. 

Uma das mais emblemáticas salas de cinema, o Cine Avenida, é agora uma loja H&M inesperada: escadarias e pilares de mármores, frescos e candeeiros de outros tempos; um TGI Friday"s, importação norte-americana de hambúrgueres e, sobretudo, cocktails, ocupa a esquina onde existiu o Cine Azul, sala mítica de cinema de autor. E o primeiro cinema de todos, o Palácio da Música (1926), causou sobressalto recentemente, quando fechou portas. Que multinacional iria ocupá-lo? A resposta tranquilizou os madrilenos: vai ser transformado num auditório de música. 

A Torre de Madrid já se vê esguia na Plaza de Espanha vista do Capitol, outro edifício-esquina onde a Plaza de Callao "regressa" à Gran Vía. É expressionismo alemão em Madrid coroado com o anúncio luminoso da Scheweppes - a combinação não é consensual, mas já ninguém lhe retira o estatuto de ícone madrileno (reforçado no grande ecrã em El Día de la Bestia). E, aqui, sobrevive um dos cinemas históricos da Gran Vía, o Capitol, com marcas do fausto passado no pórtico dourado. 

A Plaza do Callao já ficou para trás e o último troço da Gran Vía torna-se a Broadway madrilena. É que se os cinemas foram fechando, os musicais salvaram (e resgataram) teatros. Aqui, a Gran Vía recupera o brilho do passado e não é incomum ver a passadeira vermelha e câmaras de televisão a seguirem artistas e colunáveis. O Coliseum, o Gran Vía, o Lope de Veja, o Rialto e o Imperial são as salas de espectáculos que renasceram à custa das versões espanholas de êxitos como Evita ouMy Fair LadyChicago ainda anda por aqui e Mamma Mia está quase a regressar. Lado a lado com portas fechadas (a crise chegou aqui), lojas 24/7, Levi"s e Camper, mini-mercados chineses e VIPS.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. A Gran Vía sempre respirou "l"air du temp", para o bem e para o mal, e por isso nunca deixou de ser um símbolo maior de Madrid. Um símbolo vivido intensamente - ouça-se Juan Pedraz: "Esta rua encanta-me. Toda, toda. Lo feeling. No limits. Sinto amplitude". 

Cem anos depois da sua inauguração, a Gran Vía continua a cumprir o seu desígnio. Madrid é cosmopolita aqui.

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