Heróis do colonialismo
Já lhe chamaram Vaticano do Colonialismo, uma comparação desde logo sugerida pela cúpula triunfal, que coroa o hall de entrada. No centro havia uma majestosa estátua de Leopoldo II em marfim, entretanto retirada.
Mas o chão em mármore ainda exibe a estrela e a coroa que serviam de emblema ao Estado Livre do Congo, da mesma maneira que persistem nos seus quatro cantos imponentes figuras coloniais a dourado, aos pés das quais se esculpem negros em poses "exóticas". As esculturas são da autoria de Herbert Ward e têm nomes ou legendas paternalistas, do género "A Bélgica trazendo a civilização ao Congo" ou "A Bélgica trazendo a segurança ao Congo". São slogans, frases de marketing que integram a mesma campanha que levou a designar a colónia de Estado Livre do Congo livre, entenda-se, no sentido de promover o comércio livre como forma de combater o suposto atraso civilizacional das tribos africanas.
Uma campanha de clara desinformação, uma vez o apregoado comércio livre era, mais frequentemente, sinónimo de pura pilhagem. Primeiro Stanley e depois os agentes coloniais belgas escreveram algumas das mais cruéis e sangrentas páginas da história do colonialismo. É tristemente célebre a prática de mandarem cortar as mãos aos indígenas a pretexto de "darem o exemplo", ou seja, de sufocarem qualquer esboço de desobediência. Estes e mais horrores, bem documentados por missionários de outros países ocidentais, tiveram pelo menos o condão de desencadear uma campanha de indignação internacional, que finalmente obrigou Leopoldo II a renunciar ao controlo do seu feudo africano, convertido em 1908 em colónia do estado belga.
O território africano passou a responder pelo nome de Congo Belga, e, pela mesma lógica, o museu ganhou o título de "real". A maior parte da sua ala direita é agora ocupada por exposições que invocam Stanley e a história do colonialismo belga. O inglês é celebrado pelos feitos das suas expedições africanas, a invocação dessa faceta heróica fazendo previsível omissão de abrir fogo a eito sobre os indígenas que lhe faziam frente. A sala dedicada à história colonial belga, por sua vez, presta homenagem aos militares que se distinguiram nas campanhas no Congo, ao mesmo tempo que desvia as atenções para episódios mais esquecidos da sua expansão, como seja a primeira colonização dos Açores, que em 1439 eram mais conhecidos como as Ilhas dos Flamencos.
A dignidade com que as figuras coloniais são retratadas contrasta forçosamente com as poses crispadas e algo constrangedoras com que os africanos aparecem quase sempre representados. O grande benefício é que agora os segundos são muito mais sugestivos que os primeiros. É o caso por excelência do conjunto escultórico em tamanho mais que real de um homem leopardo os famosos assassinos prestes a lançar as suas temíveis garras metálicas sobre um indígena. Também muito divertidas e reveladoras da mentalidade colonial são as relíquias escultóricas do Pavilhão das Colónias, sobretudo o conjunto que representa um negro a defender uma fêmea nua indefesa da presumível investida de um negreiro árabe. Hoje esta cena pode parecer caricata, mas é preciso lembrar que a principal força de oposição aos ímpetos expansionistas de Leopoldo foram os árabes esclavagistas de Kasongo, que os colonialistas belgas acabaram por levar de vencida numa guerra curta, mas sangrenta, em 1892.