Já é Verão na Ilha de Ré
Não costuma ser Verão no final de Abril. Mas este ano, mesmo tão a norte, podia ser. E chegados sob uma estranha canícula à vila de La Couarde-Sur-Mer, na Iha de Ré, o desapontamento pela não inclusão de um calção de banho na bagagem só é compensado com um refrescante sumo natural de mirtilo silvestre, produto engarrafado por um produtor que dá a cara, no rótulo, pela qualidade do que vende. Um primeiro gole bastou para ver que o homem não exagera. O problema é que, se calção ainda se compra em qualquer lado, o sumo nem por isso, como percebemos nas infrutíferas tentativas de o reencontrar, nos dias seguintes, em todas as lojas e cafés onde entrámos.
É caso para afirmar, como se de uma bíblica parábola se tratasse, que é mais difícil provar esse néctar do paraíso do que encontrar um burro de calças, imitação de pelúcia da mascote da ilha, que, é literalmente, um ane en cullotes: assim vestido, sempre com tecidos de riscas verticais (em tons de vermelho ou azul), para proteção das patas contra os mosquitos e os efeitos do sal. Passado o espanto com a figura, percebe-se a intenção dos habitantes da ilha, que a produção de sal faz parte da cultura e da economia local, e os mosquitos, nisto de terras sujeitas ao vai-vém das marés, são praga usual.
Mas, mais do que os burros, o que se vê por toda a ilha são as bicicletas. Milhares delas, deixando-nos, de carro, com um ar de ave rara entre pardais. A Ilha de Ré tem mais pistas cicláveis do que quilómetros de estradas utilizáveis por carro, pelo que aqueles que seguirem a opção motorizada perdem a hipótese de visitar, por exemplo, algumas das zonas do interior deste pedaço de terra de 19 metros de altitude máxima que tem 30 quilómetros de comprido e pouco mais de cinco de largo, na sua zona menos estreita, e que, num ponto, chega a ter 600 apenas metros de largura.
Atravessámos este istmo protegido a sul por um grande dique, rumo ao extremo oeste, atraídos apenas por uma placa na estrada - Phare des Baleines. Percebendo, na paisagem, como a humanidade se apodera da natureza, transformando isto que já foram várias ilhas numa só, enchendo-a de vinhedos e outras culturas. E, como é pouca a terra, a água parece um campo, com os seus muros de pedra para criação de bivalves ou, noutros casos, para uma pesca de arte muito própria, na qual se espera que o peixe entre no espaço vedado com a maré cheia para o apanhar, ali preso, na maré vasa. Com a água, entre muros, controlada por eclusas.
A história de toda esta região está marcada pelo ritmo das marés. Chegados ao Farol das Baleias ainda a tempo de despedir o sol, deparámo-nos com uma baixa-mar longínqua, denunciando uma maré de grande amplitude que, ora cobre a areia onde estamos agora, ora se afasta, como é o caso, deixando a descoberto uma área extensa de seixos e outras pedras que os pescadores usam para fazer os muretes na costa. Nesta estranha praia, há um ritual que chama a atenção: todos os turistas que vão chegando aproximam-se de um jardim de pedras sobrepostas umas sobre as outras, como se de mariolas se tratasse, e começam a erguer o seu próprio totém, assim oferecido ao astro que se dilui, lentamente, no Atlântico.