É ele, Henrique, que está representado na colorida estátua de terracota que, do alto de uma escadaria, vigia a cidade para lá dos muros do Hotel de Ville de La Rochelle. O antigo edifício-casa dos autarcas da cidade condensa nas suas pedras diversos estilos e épocas e simboliza bem a opulência de La Rochelle. Visível noutros edifícios de paragem obrigatória como a Porta Nova, encimada por uma nau-dos-ventos, e pela qual se entra na cidade velha, ou o Hotel de La Bourse, com os seus símbolos marítimos, perto do qual fica a rue de L"Escale. Parcialmente pavimentada com pedras que já foram lastro de navios, e com as suas casas de uma elegância arquitectónica correspondente ao estatuto dos armadores que as habitaram a partir do século XVII, este quarteirão evoca a intensa relação da cidade com o mar.
A nossa guia, neste caso, propôs-nos que olhássemos para o chão, como tinha feito uns minutos antes, para que reparássemos numa cruz dos templários, resistente memória de tempos em que esta ordem exercia por aqui o seu poder. Mas na maior parte do caminho, é preciso, mais do que olhar em frente - para descobrir, por exemplo, algumas casas medievas que preservam no exterior a armação original, em madeira -, não perder de vista o que vai por cima de nós. Sejam eles os ganchos que encimam algumas moradias que teriam no sótão o seu armazém, ou as gárgulas que nos habituamos a observar em igrejas e que pontuam muitos edifícios civis, há muito que observar de cabeça erguida. Como as casas, na rue des Merciers, com as suas figuras esculpidas que nos remetem para o Novo Mundo, para onde a cidade se virou para, por via marítima, se reerguer após ter sido "subjugada" por Luís XIII e Richelieu.
Parece genética esta capacidade de dar a volta por cima numa cidade que, ocupada até ao fim da Segunda Guerra - ainda se vêem na Baia de Aiguillon , a norte, bunkers de betão dessa altura - recuperou rapidamente o seu fulgor. Exemplar desta maneira de ser, conta a lenda que, no final do século XII, um armador de seu nome Aufredy perdeu todas as suas riquezas, investidas numa frota da qual, durante uma longa viagem, deixou de ter notícias. Diz-se que se tornou um mendigo, conhecido de toda a cidade quando, inesperadamente, cinco anos depois, os seus navios regressaram carregados de riquezas imensas. Aufredy despediu-se da mendicidade tornando-se num benemérito, e oferecendo aos de La Rochelle o seu primeiro hospital (1203), que funcionou enquanto tal até 1940, ali onde o vemos, num extremo da Rue de l" Éscale.
Hoje, em paz consigo e com o mundo, La Rochelle aparece hospitaleira aos olhos do turista que goste destes mergulhos na história (e no mar, também), que aprecie uma visita ao seu magnifico Aquarium, símbolo moderno e grandioso, com os 12 mil animais que alberga, desta antiga relação com a vida marinha que está também presente no menu de muitos restaurantes da cidade. É caso para escrever que por aqui o mar vê-se, ouve-se, respira-se e prova-se, deixando-se tocar, se assim o quisermos, e se o calor convidar. E não faltam, nas redondezas, boas praias para o fazer, como haveríamos de descobrir ainda neste segundo dia na região, já na Ilha de Ré.