Fugas - Viagens

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Em Valença as lanternas voltaram à fortaleza

Estamos na Rua Direita (que é também estreita), o que significa que estamos numa das artérias principais de Valença intramuros, a que unia a porta da vila ao terreiro do castelo, a que ligava o hospital à câmara. Que funcionou neste mesmo edifício, velho de 600 anos, largamente reconstruído depois do terramoto de 1755, que antes foi moradia régia (a esfera armilar de D. Manuel I testemunha a sua pernoita em 1502) e foi também a antiga cadeia - não passou muito tempo desde que os detidos, no primeiro andar, faziam descer uma lata de sardinhas presa por cordas para pedir dinheiro a quem passava; esse dinheiro pagava o vinho e os cigarros que as tabernas vizinhas faziam subir. Eram crimes leves, os que se puniam aqui, com vista para a Igreja Matriz: alguém lembra "uma senhora, presa 90 dias por "trapichear" ovos".

Agora que é Núcleo Museológico ("pequeno para ser museu", explica Isilda Salvador) recebe os visitantes para um percurso pela história da fortaleza com um canhão à porta, que por acaso nunca foi usado aqui, é de navio, como se vê, indica a guia, pelas rodas baixas, apropriadas para deslocações constantes. Esta ausência de rigor histórico tem uma explicação pragmática: assim, passa mais despercebido, e os visitantes não mexem muito. 

A história também foi "desviada" ali nas traseiras: o marco miliário romano que ali vemos, e que fez as vezes de pelourinho, foi trazido das margens do rio Minho. Marcava as 42 milhas da via entre Braga e Astorga, "que nunca passou por aqui", revela Isilda. É do início da era cristã e em meia dúzia de passos mergulhámos dois mil anos no passado: a partir daqui vamos passar pelo medievo e embrenhar-nos em seiscentos (e não é exaustiva esta barreira cronológica), numa espécie de museu ao ar livre. Antes, porém, no início de tudo, houve música, que se vai repetir ao longo do percurso. António Vilarinho traz a guitarra e a voz e a noite abre a entoar "ondiñas veñen, ondiñas veñen, ondiñas veñen e van..." - A Rianxeira em honra dos (muitos) visitantes galegos, "para mostrar como os portugueses recebem bem".

"Ó Rosinha, ó Rosinha do meio..."

Somos uma estranha peregrinação a palmilhar os seixos gastos da calçada, por uma Valença feérica com luzes amarelas da iluminação pública a revelarem fachadas brasonadas e populares, igrejas e capelas, muros gastos. E um dos "segredos" abraçados pelas muralhas, no Largo de São Teotónio: um edifício de pedra escura, com ameias hesitantes, que, entre janelas de guilhotina, µ ± exibe uma janela pré-manuelina (1448), "cordas" e esferas gastas. 

Além de ser um "documento histórico", a Casa do Eirado é uma das três mais antigas de Valença. A ela juntam-se o edifício do Núcleo e a "casa da D. Augusta": a casa não vemos, mas a D. Augusta é companheira de visita e há-de dizer-nos que está habituada a abrir as portas a quem quer espreitar o interior da sua casa, de 1370. São mais estrangeiros, revela - a todos recebe com licores caseiros.

Seguimos a música - "Ó Rosinha, ó Rosinha do meio, vem comigo malhar o centeio..." - pelas ruas (não há flautista de Hamelin, mas o guitarrista de Valença poderá ter nascido nesta noite) até ao Palácio do Governador Militar, fachada clássica e severa. Actualmente alberga as Finanças, outrora recebeu uma das primeiras aulas em Portugal em que a Matemática se aplicou à arte da guerra, e por isso ainda ostenta a inscrição Aula Real de Artilharia. Era francês o general que a fundou, como francesa é a arquitectura actual desta fortaleza construída segundo o sistema de Vauban, o que constitui uma das ironias deste local: Valença cresceu contra a ameaça de invasão espanhola e nunca foi conquistada pelo país vizinho (militarmente, porque, de resto, eles estão no meio de nós - como, aliás, sempre esteve nestas paragens raianas), no entanto rendeu-se aos franceses das legiões napoleónicas.

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