Fugas - Viagens

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Em Valença as lanternas voltaram à fortaleza

A muralha já espreita, para lá deste largo de candeeiros de ferro nas paredes, árvores jovens e cheiro intenso de relva cortada mas voltamos-lhes costas e atravessamos as ruas, com o odor de petróleo a invadir o ar e os flashes a iluminarem a noite, até à Praça da República e preparamos, agora sim, o assalto às muralhas. 

"Vai formosa e não segura"

O túnel estreito, em escadaria de pedra irregular, escorregadia de tão gasta, fica quase com um engarrafamento. "Parece una manifestación" ( e inclui, até, um carrinho de bebé). É o último clarão antes de a escuridão nos envolver. Libertamo-nos do invólucro protector até agora quase invisível das muralhas para as vermos imponentes do lado de fora. Estamos na Fonte da Vila, velha fonte roqueira medieval encimada pelas armas nacionais, com o revelim que leva o seu nome ainda a proteger-nos do mundo lá fora. Há um fosso que separa este terreiro (uma falsa-braga) da muralha, as luzes de Espanha espalham-se no horizonte a norte, subindo uma encosta, para lá da faixa negra em que adivinhamos o rio Minho.

Esta Porta da Fonte da Vila já foi portajada e dessa barreira restam dois pilares que veremos quando deixarmos este ambiente bucólico, relvado, à beira-fonte onde Camões faz aparição fugaz com Lianor, que "vai formosa e não segura", seguida por cantiga de amigo, "digades filha minha porque tardaste...", a lembrar o período medieval da muralha.

Se o principal objectivo da visita é a Coroada, podemos dizer que ela só daqui a pouco vai começar, o que faz de tudo o que vimos até agora uma espécie de intróito. Ainda estamos na órbita da Praça (ou Recinto Magistral), o núcleo original da fortaleza que tem as suas raízes na muralha que D. Sancho I mandou construir na então Contrasta (significava "em frente a", no caso, Tui, a sua "metade" galega), estava o século XIII ainda no seu alvor. Hoje, a Praça, onde ainda se encontram os edifícios mais emblemáticos de Valença (ganhou este nome com D. Afonso V, que quis prestar homenagem à coragem e resiliência destas gentes na defesa do país), é um dos dois polígonos que configuram a fortaleza - o outro é a Coroada, que se ergue quase tangente ao primeiro, estando separados por um fosso (que rodeia ambos, de tamanho adaptado às insolências do relevo) e unidos por uma ponte.

Da falsa-braga (plataformas paralelas ao recinto principal, mas mais baixas) onde circulamos temos vista privilegiada para esta quase união. Daqui, a fortaleza tem como que promontórios, que são os baluartes, com árvores que são vultos: o Baluarte da Lapa e o Baluarte São José erguem-se, quase face a face, o primeiro na Praça, o segundo na Coroada, entre eles um "desfiladeiro". 

São 12 os baluartes de Valença, todos com nome de santos - o primeiro foi o de Nossa Senhora do Socorro, virado ao rio, de onde vinha o inimigo, "para apelar à protecção", explica Isilda Salvador: "Sempre fomos muralha defensiva", sublinha. Cinco dos baluartes estão na Coroada - "no fundo, três perfeitos e dois meios", como o de São José. Foi no século XVII que a fortaleza de Valença ganhou a sua forma actual, quando foi reforçada durante a Guerra da Restauração com o que de melhor a engenharia militar tinha para oferecer, ainda que tal não passasse de uma manobra de diversão (particularmente dispendiosa), uma vez que o Alentejo era o verdadeiro palco da guerra. Não obstante, a muralha medieval original foi completamente reformulada para adaptar-se à moderna artilharia (ainda há trechos medievais por aqui), foi construída a Obra Coroada e foi-lhe dada a configuração abaluartada que lhe conhecemos, com as suas falsas-bragas, revelins (quatro) a proteger as portas (Coroada, Fonte da Vila, Gaviarra e Sol) e tenalhas, entretanto desaparecidas, a compor uma obra ao estilo Vauban, numa altura em que Portugal ainda estava sob influência dos modelos holandeses de fortificação.

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