Já passamos por baixo da ponte da Coroada: o vento começa a apertar, a poeira voa e nas muralhas somos vultos gigantes num teatro de sombras sem argumento, iluminados por holofotes.
"Quem está aqui todos os dias nem dá muito valor a isto."
"Ó rama, ó que linda rama..."
Se na descida ao fosso foi necessário cuidado, agora que regressamos ao interior da muralha é necessário esforço. Entramos por uma poterna (porta secundária, dissimulada) e agora estamos no Baluarte São José, preparados para a segunda volta à Coroada. O cante alentejano enche a noite minhota - "Ó rama, ó que linda rama" arranca "bravos" - antes de nos fazermos ao caminho de ronda.
"Aqui vinha muito ao sábado com a minha neta", diz-nos uma valenciana, apontando, vagamente, a direcção da sua casa. "Ao andar de baixo, nunca fui... Mas também é de noite, muitos sítios não reconheço." "Era bonito para levar os turistas durante o dia", comenta, "como quando vais de férias e fazes aquelas visitas".
As guaritas agora vão-se sucedendo a espaços. Ali, a sentinela jamais podia adormecer, por isso, havia uma senha que tinha de ir passando de guarita em guarita de forma a contornar a fortaleza. Se não passasse, era certo que alguém se tinha deixado dormir.
Algumas lanternas já estão apagadas e poucos se preocupam em reacendê-las quando novamente nos instalamos para escutar mais calmamente Isilda. Estamos no Baluarte São Jerónimo, por cima do "revelim virgem", ao lado da Porta da Coroada, para ver datas. A da porta já sabemos; aqui, em dois merlões a ladear uma boca de fogo, temos duas: 1600 e 1661. É uma das últimas datas gravadas na fortaleza: há outra, 1817, que corresponde a uma reconstrução. Quando os franceses deixaram Valença depois de uma permanência de oito dias - a praça rendeu-se em 1809 ao General Soult, após três meses de cerco de artilharia pesada e quando tinha apenas 30 soldados (muitos desertaram e aderiram aos ideais da Revolução Francesa) - não cumpriram os termos da capitulação: rebentaram parte da muralha (e roubaram o tesouro colegial e todo o ouro e prata que encontraram).
Passamos por casas com portas para o caminho de ronda, ultrapassamos portas pequenas na muralha enquanto seguimos pelas margens do topo da fortaleza, vista para paisagem nocturna sem lua. O vento veio para ficar - "como sempre por aqui", comenta-se - a "lanterna de igreja" já está apagada e vai ao ombro como uma cana de pesca, quando regressamos ao "miolo" junto da Porta do Meio.
Está sinal vermelho para os peões mas ninguém se preocupa. Atravessamos a ponte, entramos na porta para regressar à Praça e paramos para observar uma trave original - a madeira e a corda - que ostenta os buracos que outrora serviam as correntes da ponte que aqui já foi levadiça e permitia ter uma zona estanque em caso de invasão. E como estas portas duplas são multifunções, há uma casamata.
A visita à parte mais moderna da fortaleza de Valença termina aqui, e já é quase meia-noite. Mas ainda não é o fim. O fim é a surpresa prometida desde o início da noite, e que é um convite: o de provar o caldo verde com broa de Valença, já uma das 21 Maravilhas da Gastronomia Nacional, e na corrida às sete. Irrecusável, depois da caminhada ventosa. Quando saimos, mais música. "Desfolhei um malmequer num lindo jardim de Santarém..."