"Cheguei a não me poder mexer". Perdeu a conta às horas passadas a cortar, dobrar, esculpir papel. Até Junho, todas as tardes, tinha a Academia Sénior, à noite, flores. "Fiz mais de 1000 flores. Primeiro comecei a contar, mas depois desisti. É sempre muito cansativo, tem-se a casa cheia de gente". Cabeça de rua, Júlia Galego não é campomaiorense (é do Crato e viveu 40 anos em Lisboa), mas desde 2004, ano em que foi parte activa nas suas primeiras festas, como ajudante da sogra, é como se fosse.
O seu trabalho, aliás, serviu até de inspiração a Cristina, trabalhadora número um da Rua Estreita, à distância de um par de passos, sempre a descer no piso em paralelo. "Nas últimas festas morava na Major Talaya, trabalhei lá e aprendi muito com aquela senhora". Há sete anos, em pleno período pré-festas, trocou essa rua pela Estreita, que ajudou a enramar. Este ano teve um trabalho quase solitário para que nada faltasse: "Os homens ajudaram com as colunas e quem tem menos jeito fez os torcidos. Tive muita coisa ao meu carrego, foram muitas horas, era de dia e de noite. Fazia 20, 30, 40 flores por dia". Enquanto exemplifica como se fazem os laços bordeaux, elemento predominante da decoração, sussurra uma confissão. "É uma pena acabar".
Alma no papel
A revelação não surpreende, depois de termos visto o entusiasmo das ruas, a dedicação, o gosto com que os campomaiorenses se atiraram de corpo e alma às suas festas. "O que tenho na alma vai para o papel". Cremilde desarma logo nas primeiras palavras. Antes, a irmã Paula já tinha revelado o segredo da inscrição da Rua Heróis do Ultramar. Se há ruas que o fazem pela tradição, esta fê-lo por altruísmo: "Sempre vivemos para as festas. As pessoas desta rua já são idosas e a minha irmã quis dar-lhes uma alegria."
"Não tenho palavras para descrever as festas. É uma paixão que já vem de miúda, comecei a ver os meus avós, os meus pais. Gosto mesmo disto. Andei a perguntar porta a porta quem queria participar. No início foi a desilusão porque houve pouca gente disponível, mas depois animei-me. Fiz isto a pensar no idoso que não pode sair de casa e que assim pode ir à sua porta e ver a rua enfeitada". Os Heróis do Ultramar têm a sua própria heroína, uma mulher que vive desde os 11 anos (hoje tem 55) o momento alto da sua terra, e que este ano passou muitos meses, muitas horas, muitos minutos a criar o jardim da sua rua, sempre com a ajuda da irmã Paula, a arquitecta do projecto. Perguntamos-lhe se é preciso ter um dom para as flores, mas nem precisávamos de esperar pela resposta para saber: "Pois. A gente tem-no nas mãos".
Se o dom de Cremilde é a criação, o de Paula é a imaginação - aqui em Campo Maior, nestas festas, funciona assim: cada um contribui com o que tem, cada um dá o melhor de si. "Ela tem mais jeito para as flores, mas eu é que arquitectei isto tudo. Numa hora desenhei a rua toda", diz, com um enorme sorriso de satisfação, misturado com uma certa timidez. Ao trabalho nos escritórios da Delta, a mais nova das irmãs juntou a dedicação, "fosse de manhã ou de noite" à sua rua, sempre com a memória do último momento em que o povo da vila alentejana se juntou: "Todas as festas para mim foram espectaculares, mas mais as de 2004. Não foram diferentes, nem maiores, foram grandiosas." c