As catacumbas dos capuchinhos
Cidade-mosaico, Palermo não se esgota no seu centro medieval. É uma urbe viva, alegre, orgulhosa. O viajante pode deixar de lado o seu centro moderno, que é banal, e não deve desesperar com o trânsito caótico. “Faz e deixa fazer”, parece ser a consigna dos automobilistas. E ninguém tenta dar lições de código de estrada ao condutor do lado.
Aproveite então para se deslocar aos arredores, até às catacumbas da Igreja dos capuchinhos. A experiência recomenda-se apenas aos espíritos resistentes. Estas catacumbas lidam com a morte. Expõem-na e exibem-na. Cerca de oito mil múmias, vestidas, de homens, mulheres e crianças, da aristocracia, da burguesia e do clero de Palermo, aí foram guardadas entre os séculos XVI e XIX. Penduradas nas paredes ou deitadas em estantes, como se de uma biblioteca mórbida se tratasse.
Ninguém, e muito menos os frades da congregação, explicam o porquê desta casa mortuária. Tributárias da filosofia grega, as tradições islâmica, judaica e cristã ligam mais à alma do que ao corpo. No caso do Islão, este, amortalhado em pano, é simplesmente lançado à terra. Não há, sequer, a protecção de um caixão. O que do barro nasceu, ao pó regressa. Esta é a regra.
ISTAMBUL
Entre oriente e ocidente
Contudo, em Istambul – literalmente, A Plenitude do Islão – não é bem assim. Os corpos são sepultados na terra após o derradeiro adeus dos vivos. Mas por cima erguem-se túmulos decorados. Tal como em Palermo, também aqui a aristocracia e a burguesia otomanas reclamaram o seu direito a algo mais do que sete palmos de terra. Os jazigos de pedra têm estelas. Para mulheres, com decorações florais; e para homens, com turbantes. Talvez não se trate de vaidade. Talvez em Istambul se esteja ante um resgate e um recado. Os cemitérios das elites de Istambul apropriam-se, afinal, de mil anos de história cristã. E talvez nos queiram dizer que o paraíso se encontra, como a própria cidade, algures a meio caminho entre Oriente e Ocidente.
Quando hoje tanto se escreve sobre o pedido de adesão da Turquia à União Europeia, talvez um pouco de História ajude a compreender melhor a legitimidade de um pedido formulado, pela primeira vez, há 40 anos.
Antes de ser Istambul, a cidade foi Constantinopla. E antes desta, Bizâncio. A sua localização – onde o Mar da Mármora se encontra com o Corno de Ouro, o braço de água que liga o Mediterrâneo ao Mar Negro – é excepcional. Foi a geografia que colocou a cidade no cruzamento de todas as rotas terrestres entre Oriente e Ocidente.
Vítima do seu sucesso, Constantinopla estendeu-se para a ilha que lhe fica em frente, Pera. No século XIV, os imperadores entregaram-na a mercadores genoveses, em troca de protecção contra a república de Veneza. Mas, nesta altura, as fronteiras do antigo Império de Oriente já coincidiam com as da própria cidade. A cidade é o Império. Ou o que dele resta. A sua população é, também, extraordinariamente flutuante. A espantosa muralha bizantina, de 25 quilómetros de extensão e ainda visível em muitos dos seus troços, chegou a albergar centenas de milhares de pessoas.
Constantinopla foi a única megalópole que a Idade Média produziu.
Os califas europeus
Esse perfil não se alterou durante os 600 anos de califado otomano. Na viragem para o século XX, Istambul tinha um milhão de habitantes, tanto como Paris. A sua população não era, sequer, maioritariamente turca. E as comunidades tinham os seus bairros com administração própria. Saindo um pouco do centro e acompanhando o Corno de Ouro, há um bairro de casas de madeira onde a comunidade de origem grega viveu até aos anos 20 do século passado. Está muito degradado e quase desabitado. É aí que ainda se celebram os ofícios do patriarcado ortodoxo, embora sejam mais os oficiantes do que os assistentes. O canto gregoriano é uma saudade e o bairro uma melancolia. Mas ambos lembram como se vivia. No Palácio dos califas, o Topkapi, uma outra variante desta história de encontros e desencontros se pode contar.