Fugas - Viagens

Kharkiv, à sombra da memória de Lenine

Por Miguel Gaspar

Foi a primeira capital da Ucrânia soviética e esmaga-nos com as avenidas e praças de enormes dimensões. Estamos a dois passos da Rússia e a memória do comunismo não é para deitar abaixo. Mas nem tudo é linear na cidade das grandes perspectivas.


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Antes de mais, a cidade de Kharkiv fala de si mesma através do espaço. Logo no centro, está a Praça da Liberdade (Praça Svodoby). É uma das maiores da Europa e no centro, a dominá-la, está uma estátua de Lenine. Tem mais de 700 metros de comprido e cerca de cem de largura. Atrás da estátua, enfrentam-se, em cada lado da praça, dois prédios também eles descomunais. O edifício Derzhprom, um edifício construtivista de 1928 que no seu tempo era o mais alto da Europa e que permanece o principal ícone arquitectónico da cidade, e o edifício da universidade, da mesma época mas menos audacioso do que o primeiro, em relação ao qual funciona como contraponto. 

A praça, o edifício Derzhprom e a universidade pertencem a uma mesma história. Kharkiv (é mais conhecida como Kharkov mas o nome correcto em ucraniano é Kharkiv e lê-se Harkiv) é hoje uma cidade com 1,5 milhões de habitantes, foi a capital da república socialista da Ucrânia entre 1917 e 1934 e o poder soviético decidiu dotá-la dos atributos de uma capital. Fundada pelos cossacos em 1654, Kharkiv já era um centro industrial e académico muito relevante da Rússia imperial (a Universidade data de 1805). Os comunistas rasgaram avenidas enormes, algumas com mais de 20 quilómetros (o país é plano, há muito espaço para construir), fizeram a praça que começou por ser a Praça Dzerzhinsky (o fundador da Cheka, antepassada do KGB) e passou a ser da Liberdade após a independência, em 1991.

As dimensões da cidade sufocam, esmagam. Deixam uma sensação de vazio, numa cidade muito mais recente do que Kiev ou Lviv e à qual falta o lastro histórico destas. No entanto, Kharkiv fala connosco. No silêncio abstracto dos ângulos rectos dos cruzamentos das avenidas, nas cores claras dos edifícios da época imperial, há aqui algo de estático que me fascina. Aqui parece ser possível ler como uma revolução arrancou e parou, a memória do comunismo revela-se como algo palpável. Sente-se o gigantismo com que o regime inicialmente se projectava e a incapacidade de renovação que em última análise o destruiu. Vejo a sombra da estátua de Lenine projectada na praça onde em tempos os Queen tocaram para 350 mil pessoas. Brian May, o guitarrista que também é astrofísico, terá gostado de tocar nesta cidade cheia de universidades técnicas e da qual já saíram vários prémios Nobel. Mas o que terá pensado do enorme espectador de pedra, que noutros tempos inspirava as multidões?

Aqui o russo é a língua dominante e uma certa nostalgia do comunismo parece perdurar. Mais de dois quintos da população é de origem russa, mas está misturada com a ucraniana. Apesar de ter continuado a ser um grande centro industrial, depois da independência, no espaço urbano de Kharkiv não há marcos que ultrapassem os que ficaram da era soviética. Ao contrário do que acontece em Donetsk, que foi a última etapa deste périplo, não parece existir aqui uma dinâmica de renovação urbana ou arquitectónica, pelo menos nas zonas centrais da cidade.

"Era uma cidade operária onde o Partido Comunista tinha um grande apoio", diz Konstantin Kudriastev, o meu guia. Lenine permanece no centro da praça desde 1964 porque os ucranianos não negam o seu passado. "Aqui, as estátuas não são polémicas", afirma Konstantin. O gosto por elas não é meramente decorativo: "Há alguma nostalgia", acrescenta. "Para o meu avô, Estaline era Deus. Ele era um russo que emigrou da região do Volga. O Estado pagava-lhe a casa, a saúde, a educação dos filhos e as férias no mar Negro. Mas com a minha mãe as coisas já eram diferentes." 

Em que é que uma cidade soviética pode ser diferente das outras? Alguns detalhes são reveladores. A primeira linha de metro, que abriu em 1975, não chegava ao centro da cidade: ligava os bairros dormitórios à gigantesca avenida onde está concentrada a maior parte das fábricas, como se o centro não existisse. É como se em Lisboa o metro tivesse começado por ligar Almada ao Barreiro, por exemplo.

Mas apesar da forte ligação à Rússia e ao passado soviético, Kharkiv foi um centro muito importante do movimento independentista ucraniano, desde o século XIX. Tem monumentos aos milhares de polacos assassinados pela polícia secreta durante a II Guerra Mundial e aos independentistas ucranianos mortos pelos soviéticos nos anos 1930. E não faltam em Kharkiv várias estátuas de Taras Chevchenko, o poeta do século XIX que é considerado o pai da literatura ucraniana e um dos fundadores da consciência nacional ucraniana. Nada é linear, na cidade cortada pelas grandes avenidas em linha recta. Apesar das diferenças, há duas coisas que não mudam do Oeste para o Leste da Ucrânia: o borscht, a tradicional sopa ucraniana (e não só) à base de beterraba, e as estátuas de Taras Chevchenko.

Uma cidade jovem e velha

Kharkiv é uma cidade jovem, diz o nosso guia. Mas é jovem e velha ao mesmo tempo. Há qualquer coisa que parece ter parado no tempo. Como se existisse uma identidade demasiado forte que não fosse possível apagar. Voltamos à praça da Liberdade. É domingo à tarde e há um ambiente de festa na aldeia. Só há jovens no parque, namorados, grupos de rapazes e grupos de raparigas. Uns cantam em grupo, outros fazem jogos. Bebe-se cerveja em garrafas embrulhadas em papel pardo, para disfarçar. Há algo de ingénuo e contido no ar, como se fosse uma festa de província.

Tudo é diferente da Ucrânia ocidental. Há menos igrejas, por exemplo. Se Lviv tem mais de uma centena, aqui a densidade é menor. As três igrejas mais importantes da cidade, todas ortodoxas, estão agrupadas na zona antiga, na colina entre os rios Kharkiv e Lopan. Foi aqui que os cossacos construíram, em 1654, a fortaleza que está na origem da cidade. Não sobram vestígios dessas fortificações e não é possível visitar um dos pontos de maior interesse da colina: as passagens subterrâneas que alguns dizem ser dos séculos X a XII, antes das invasões mongóis, embora também se acredite que sejam contemporâneas das fortificações cossacas. Os túneis ligavam a colina ao outro lado dos rios e podiam ser usados em caso de cerco. 

O ano da fundação da cidade coincide com o do Tratado de Peyeraslav, assinado em Moscovo entre os cossacos e o czar Alexei I. O tratado marca o declínio da dominação polaco-lituana na Ucrânia e o reconhecimento da autonomia dos cossacos, agora aliados de Moscovo, em grande parte da Ucrânia oriental. Ao tratado seguir-se-ia uma guerra entre a Polónia e a Rússia, na sequência da qual a influência russa na Ucrânia não parará de aumentar. Kharkiv nasceu como parte do que ficou conhecido como a Sloboda Ukraine (Ucrânia Livre), uma região onde comunidades de cossacos se iam fixando e gozavam de uma grande autonomia. Guerreiros temíveis, eram um tampão protegendo a fronteira sul da Rússia. Mas com o reinado de Catarina II, no século XVIII, esses privilégios desapareceriam. A partir de 1765, Kharkiv tornar-se-ia uma província do Império Russo.

Com os cossacos, era também a influência da igreja ortodoxa russa que avançava na Ucrânia. Poucas décadas após a fundação da cidade, começou a ser construído o mais antigo edifício de pedra que subsiste em Kharkiv, o Mosteiro do Santo Sudário (1689), que é também o seu mais interessante monumento religioso. É um exemplo do barroco ucraniano, que se desenvolveu durante a época dos cossacos. No interior, os crentes dispersam-se pelas duas naves: a da esquerda é dedicada aos mortos e deixam-se oferendas; a da direita é dedicada aos vivos.

As principais marcas do período imperial são as duas outras catedrais da zona antiga da cidade, a da Assunção, em estilo barroco, do século XVIII, e a da Anunciação, em estilo bizantino, já de finais do século XIX. Há ainda os inúmeros edifícios neoclássicos espalhados pela cidade, em particular os da universidade. 

Uma parte significativa da cidade foi destruída durante a II Guerra Mundial. A cidade seria reconstruída nos cinco anos posteriores ao conflito. O preço que pagou foi elevado: três quartos da população da cidade morreram em consequência do cerco nazi à cidade, que já fora duramente atingida pela grande fome provocada por Estaline, em 1932 e 1933, que causou milhões de mortes. No início da II Guerra Mundial, Kharkiv era ao tempo a terceira maior cidade da URSS e foi das mais fustigadas pelo conflito. Conquistada pelos nazis em 1942, seria libertada em Fevereiro do ano seguinte e reconquistada menos de um mês depois pelo invasor, que permaneceria na cidade até Agosto. Na sua história da II Guerra Mundial, o historiador britânico Martin Gilbert explica que Hitler escolhera Kharkiv como alvo do que chamou a terceira ofensiva alemã na Rússia: "O objectivo (...) era uma tentativa de reconquistar Kharkiv, contando Hitler que essa operação não só fosse capaz de travar os avanços soviéticos dos últimos três meses, mas lhe permitisse reassumir a inciativa e reocupar um território tão vasto quanto possível". A libertação de Kharkiv seria um dos primeiros passos da batalha do rio Dniepr, uma das maiores da História, na qual participaram quase quatro milhões de soldados. Vários monumentos na cidade e nos arredores evocam a violência do conflito, tal como acontece por toda a Ucrânia.

Os prédios da revolução

Na marca errática dos edifícios que escaparam e dos que foram construídos de novo, sobrevive uma forte presença da arquitectura neoclássica imperial. Em relação à era soviética, há um confronto permanente entre o estilo neotradicional imposto por Estaline a partir de 1933 e o construtivismo. Este é minoritário, mas responsável por alguns dos edifícios mais icónicos da cidade. 

O construtivismo emergira dos movimentos de vanguarda que surgiram após a revolução de 1917. Estes defendiam uma arquitectura que exprimisse a dialéctica da revolução nas formas e nos materiais. No princípio dos anos 1930, essa corrente foi substituída pelo neotradicionalismo classicista, que deu origem aos célebres "bolos de noiva" soviéticos. O edifício da Derzhprom, no qual estavam concentradas inúmeras empresas e organismos públicos, e que os nazis tentaram mas não conseguiram demolir durante a guerra, permaneceu como um vestígio do princípio da revolução. "A tendência modernista de reduzir tudo a formas abstractas tornava-a insatisfatória para representar o poder e a ideologia do Estado", escreveu a este propósito o historiador de arquitectura Kenneth Frampton. Era um confronto entre a arquitectura moderna e revolucionária e uma arquitectura de Estado, reaccionária. "O partido [Comunista] sentia que o povo era incapaz de responder à estética abstracta do modernismo", acrescenta Frampton. Na praça da estação, os dois estilos enfrentam-se. De um lado a antiga estação dos correios, construtivista, do outro a estação de comboios, neoclássica, decorada com alusões à história da União Soviética. 

Um passeio de automóvel

Dada a extensão da cidade, Kharkiv visita-se de automóvel. Konstantin conduz-nos pelas extensas avenidas da cidade. Numa das maiores estão as fábricas de armamento que foram desmontadas peça a peça para lá dos Urais antes de os nazis chegarem. Kharkiv era um importante centro de indústrias de armamentos e as suas fábricas de blindados eram particularmente cobiçadas por Hitler. Um dos orgulhos da cidade é ter sido aqui que foi concebido o T-34, o tanque que seria decisivo para a vitória do Exército Vermelho e que seria produzido nas fábricas dos Urais.

Numa das zonas residenciais passa-se também pelo estádio do Metalist, onde Portugal defrontará a Holanda, na fase de grupos do europeu. O velho portão de entrada foi preservado. Aliás, não se trata de um estádio construído de raiz mas de uma remodelação. Tem capacidade para cerca de 40 mil espectadores. Nas paredes laterais dos prédios em volta do estádio estão afixados enormes cartazes do clube, fundado em 1925.

Noutra grande avenida, a perspectiva Lenin, o Lada avança devagar sem que se consiga vislumbrar onde ela acaba. "Houve um grupo de pessoas que quiseram que ela se passasse a chamar Perspectiva John Lennon", mas a proposta foi recusada. Konstantin trava para deixar passar um casal de idosos que atravessa a avenida fora da passadeira - na Ucrânia os condutores em geral são loucos mas os peões são disciplinadíssimos e nenhum atravessa no vermelho. E dá-me uma explicação.

- Vê, é um problema que ficou dos tempos soviéticos.
- Qual problema?
- As pessoas de idade a atravessar as ruas. Nunca usam as passadeiras.
- E o que tem isso a ver com a União Soviética?
- Nessa altura não havia carros.

Nada é linear em Kharkiv. Nem as grandes avenidas, afinal de contas.

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