Depois de quase dois anos a percorrer Portugal continental a pé, Nuno Ferreira lançou-se em nova e longa caminhada pelas terras e tradições, pelos vestígios de cultura popular e quotidianos esquecidos. Agora é a vez dos Açores, que anda a descobrir passo a passo desde Março. Nas pernas já leva São Miguel, Santa Maria, Terceira e São Jorge. E segue com os olhos lavados na paisagem bucólica das ilhas, o corpo sacudido nas festas populares, na tourada à corda, na pesca do atum. Com o espírito acolhido na hospitalidade e memória das gentes. Em Setembro, segue a sua odisseia por caminhos da Graciosa, Pico e Faial. Mas não há data para terminar o arquipélago, que este é um percurso para ser feito sem pressas ou calendários.
Nos Açores, o jornalista tem seguido a mesma rotina da primeira viagem, retratada no livro “Portugal a Pé”: longos passeios entregues à beleza paisagística, encontros constantes com as gentes, memórias e tradições. Caminhadas por serras, praias e campos que desembocam invariavelmente nas povoações e lugarejos, onde vai perscrutando o quotidiano açoriano, conversando com quem encontra. E é aqui, no contacto com as pessoas, que Nuno Ferreira mais sente diferenças relativamente à viagem feita pelo Portugal profundo continental.
Se no continente o surpreendia a desconfiança com que as pessoas o recebiam – muitas vezes tomando-o por peregrino, vagabundo ou pior –, nos Açores “não passa por nada que não seja turista ou jornalista”. Mas o que mais o tem marcado nas ilhas é o facto de “ainda não se ter perdido a vida comunitária”, um contraste imediato com a imagem desoladora que encontrou no interior continental, caracterizado pela desertificação e pela “desagregação do mundo rural”. Nos Açores, “apesar de uma grande sangria de gentes” emigradas para os Estados Unidos ou Canadá, as comunidades ainda existem como tal: “chego a uma freguesia e há uma igreja, um padre, uma ou mais bandas filarmónicas, um ou mais cafés”.
E muitas, muitas tradições. Em São Miguel, encontrou vários romeiros da Quaresma, assistiu à procissão dominical do Irró (a festa dos pescadores de Vila Franca do Campo). Em São Jorge, participou em bailes regionais de arreigada tradição. Na Terceira, visitada já em pleno Verão, as terras fervilhavam de festa: chegou no último dia das Sanjoaninas, assistiu ao Bodo de Leite nas Fontinhas e acompanhou as festividades do Divino Espírito Santo, com direito a cantares ao desafio e touradas à corda.
Fenómeno social na Terceira de Maio a Outubro, chegam a ser organizadas três e quatro touradas à corda ao mesmo tempo. “Uma hora e meia antes já a zona está repleta de gente com barracas de torresmos e homens com baldes cheios de cracas ou lapas a tentar vendê-las. Famílias inteiras posicionam-se nas varandas enquanto a rua e os lugares mais perigosos são ocupados pelos mais atrevidos. Fui duas vezes e fartei-me de correr para tirar fotografias”.
Tranquilidade bucólica de paisagens e vivências
No final do ano passado, um amigo convenceu-o de que, findo o projecto “Portugal a Pé”, “o passo a dar seria tentar os Açores”, um território com o qual sempre teve afinidade e que já tinha visitado por diversas vezes. Partiu, “mal teve disponibilidade”, e percorre agora o arquipélago entre regressos esporádicos ao Continente.
Normalmente chega à localidade mais importante de cada ilha e começa a caminhar para Este ou Oeste. Ao fim do dia, regressa de transporte ao sítio onde está alojado e, na manhã seguinte, retoma o caminho no ponto onde tinha ficado.Sempre a pé e sozinho, para “ir vivenciando o dia-a-dia” dos locais por onde passa, ao seu ritmo, parando quando e onde lhe apetece, sem pressas. “Procuro muito a cultura popular e isso nem sempre está lá à nossa espera. Passo numa determinada freguesia e não está lá o latoeiro ou o cantador que quero entrevistar. Eu espero”.
Em São Miguel, por exemplo, queria sair com uma campanha da pesca do atum, mas “teve de esperar alguns dias até o mar estar em condições” e “depois meteu-se uma viagem breve do mestre ao Continente”. Contudo, a espera acabou por compensar e pôde acompanhar o barco “Ponta dos Mosteiros” e os seus homens num dia de faina. “O mais impressionante é quando começa a pescaria: a vozearia dentro do barco, o esforço para puxar um atum de 160 quilos para dentro do convés. É tudo muito frenético. E é muito duro. Regressámos às 20h e no dia seguinte a tripulação voltava ao mar à mesma hora [3h]”.
São muitas as histórias de vida que vai encontrando e guardando em memória no blogue, no Café Portugal ou na revista Epicur: músicos, cantadores, poetas populares, antigos baleeiros, pescadores, agricultores e muitos artesãos cuja arte vive à beira da extinção. Em São Miguel encontrou um dos últimos albardeiros da ilha; em Santa Maria passou por uma família de antigos moleiros; na Terceira já só restam dois construtores de violas, o último latoeiro. “Caminho para encontrar essas pessoas, que são quem molda a nossa identidade e cultura”.
E por entre um encontro e outro, muito andarilho, muita paisagem. E muito suor. Até agora “o mais difícil” foi a humidade e o calor do Verão da Terceira e de São Jorge, numa meteorologia açoriana já de si de humores imprevisíveis, com chuva, vento e nevoeiro. Mas o esforço é geralmente recompensado por vistas idílicas e lugares surpreendentes. A “beleza lunar” do Algar do Carvão na Terceira, a “tranquilidade bucólica do interior de Santa Maria e a disposição espaçada das casas marienses entre o verde”. Em São Jorge, a Fajã dos Vimes, a Fajã dos Cubres e a Caldeira de Santo Cristo. “É provavelmente um dos locais mais mágicos que visitei até agora”.
Fica a dica: “De todas as fajãs de São Jorge, a da Caldeira é provavelmente a mais bonita e especial devido à envolvência muito verde, à lagoa, ao contraste entre o marulhar do mar e a calmaria da lagoa. As casas são em pedra e poucas, cercadas pela montanha muito verde e as nuvens estão sempre em movimento lá por cima. E por perto, na serra, há uma cascata imperdível”.
A viagem de Nuno Ferreira prossegue agora, com o caminhante a continuar a calcorrear o mundo de contrastes quase inalterados do arquipélago. E depois do continente e dos Açores, Madeira? Para já, Ferreira mantém-se “ainda muito embrenhado na travessia açoriana”, mas, entretanto, em entrevista a um jornal madeirense já avançou “que um dia gostava de fazer o mesmo na Madeira”.
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