Nuremberga. Não há assim tantas cidades no mundo cujo nome se associa, imediatamente, a um acontecimento específico da História. Nuremberga. Julgamentos de Nuremberga. Segunda Guerra Mundial. A cidade sabe que o peso da História permanece sobre os seus ombros e os seus habitantes não parecem particularmente confortáveis em falar sobre esse período do seu passado. Mas não o varreram para debaixo do tapete. E o Centro de Documentação, que exibe em permanência, a exposição Fascinação e Terror, sobre a ascensão de Hitler ao poder e a sua relação com Nuremberga, é um dos melhores exemplos disso. “Sentimo-nos responsáveis, por isso o Centro de Documentação é tão importante”, diz Wolfram Zilk, director de Relações Públicas do Turismo da cidade.
Wolfram está sentado no Passeio dos Artesãos, um espaço de restaurantes e lojas que abriu nas muralhas de Nuremberga, em 1971, com a intenção de se manter apenas durante um ano. Hoje ainda lá está e entre brinquedos, o tradicional pão de mel e as bolachas de gengibre, também é possível comer as típicas linguiças da cidade. São pequenas e assemelham-se a dedos longos. Pedimos seis, porque é o número mínimo vendido pelo restaurante. “Não, vão ser precisas oito”, diz, confiante, Wolfram — e tem razão.
O Passeio dos Artesãos encontra-se numa das portas da antiga muralha, a Porta das Mulheres, e de uma das torres redondas que ainda permanecem de pé. Dali sai a König Strasse, o caminho favorito para ficar a conhecer o centro histórico em pouco tempo. Ou o que resta dele.
Hitler escolheu Nuremberga como a Cidade dos Congressos do Partido Nacional-Socialista e sonhou construir ali um imenso complexo de edifícios que albergasse esse evento anual, servindo, ao mesmo tempo, como testemunho da supremacia do seu regime. Albert Speer foi o responsável pelo desenho do complexo global, que incluía a tribuna do Parque Zeppelin, a Grande Estrada, com 60 metros de largura e dois quilómetros de comprimento, e que está alinhada com o castelo de Nuremberga, o estádio municipal, o Estádio Alemão (um edifício monstruoso que poderia sentar 400 mil espectadores, mas cuja construção nunca passou das fundações) e, entre outros espaços, o Centro de Congressos, que não foi concluído e onde está hoje instalado o Centro de Documentação. Nuremberga recebeu Hitler de braços abertos e pagou cara essa amizade. O centro da cidade foi intensamente bombardeado em 1945 e cerca de 90% dos seus edifícios foram destruídos.
No pós-guerra chegou a considerar-se a hipótese de não reconstruir a cidade, deixando-a como uma memória do horror da guerra. Nuremberga, contudo, haveria de ser reconstruída, embora se tenha optado por reabilitar apenas os edifícios mais emblemáticos. Seguindo pela Königstrasse, por exemplo, encontra-se a monumental Igreja de São Lourenço, cuja construção se iniciou em 1250. Fotografias a preto e branco do tempo do centro histórico do pós-guerra mostram que da enorme estrutura apenas sobreviveu a fachada gótica com as suas duas torres.
A Igreja de São Lourenço, assim como a Igreja de São Sebaldo, que também foi seriamente afectada pelos bombardeamentos, nasceram como igrejas católicas, mas tornaram-se luteranas no século XVI. Contudo, no interior de ambas estão todas as imagens religiosas alheias ao luteranismo e típicas do cristianismo. Mireille Markus-Toth, que é a nossa guia do centro histórico, explica: “As imagens foram feitas a pedido das famílias ricas da cidade e são obras de arte, pelo que, quando as igrejas passaram a ser luteranas, as pessoas não quiseram que elas fossem retiradas. Decidiu-se que continuariam nas igrejas, não como elementos de adoração mas como esculturas, só para apreciar.”
Ao contrário dos edifícios, que precisaram de enormes trabalhos de restauro, as obras de arte no seu interior são originais, porque as igrejas tinham sido despidas dos seus tesouros, por precaução, durante a guerra. É graças a isso que ainda é possível apreciar hoje a curiosa escultura suspensa, em madeira pintada, da Anunciação, de Veit Stoss, ou belos tabernáculos pintados de Adam Kraft. Pelo mesmo motivo, em São Sebaldo (actualmente a sofrer trabalhos de restauro) também é possível apreciar o caixão de bronze, desenhado por Peter Vischer e os seus filhos, no século XVI, contendo o corpo do santo padroeiro da cidade.
Entre as duas igrejas passa o rio Pegnitz e, quando o atravessar, não deixe de olhar para a Ponte da Carne (Fleischbrücke), cheia de barracas de venda, e que serviu de inspiração à Ponte Rialto, em Veneza (Itália). E entre as duas igrejas fica também a Praça do Mercado, com a Igreja da Nossa Senhora e a Fonte Bonita. Assim mesmo, é esse o nome. É aqui que se realiza o tradicional mercado de Natal, que os habitantes de Nuremberga juram ser o mais tradicional de toda a Alemanha. E é daqui, também, que há várias fotografias de Hitler passeando, perante uma multidão entusiasmada. As casas típicas da praça não foram reconstruídas após a guerra.
O plano de recuperação de Nuremberga fez com que a cidade, que foi das mais importantes de toda a Europa na Idade Média, não tenha hoje um centro histórico coeso de edifícios antigos. As igrejas e casas que sobreviveram aparecem intermitentemente, entre construções do pós-guerra que, na sua maioria, não destoam da harmonia da cidade. Sob o solo corre uma eficiente rede de metro e à superfície os trams garantem o acesso entre diferentes pontos da cidade. Como o centro histórico e o Centro de Documentação, que fica a cerca de dez minutos de distância, no tram número 9, saindo da praça da estação ferroviária.
O centro é a última paragem, num espaço rodeado de verde, onde os alemães andam hoje de patins, bicicleta ou a pé. Lá dentro, o presente desaparece, enquanto percorremos, agarrados ao audiofone, sala após sala, a história de Hitler e da sua relação com a cidade. O audiofone é obrigatório porque todos os painéis descritivos estão exclusivamente em alemão. Mas também porque, ao longo do percurso, que fazemos em duas horas (mas precisávamos de mais, de muito mais), somos continuamente confrontados com imagens de arquivo da época, em que é possível ouvir as vozes dos que tornavam a cidade num centro inequívoco do regime nazi.
Há uma sala inteiramente dedicada a Leni Riefenstahl e à filmagem de O Triunfo da Verdade. O filme foi feito ali mesmo, a poucos metros de distância. As massas de soldados de braço esticado, as bandeiras gigantescas ondulando ao vento, a consagração de Hitler como algo maior do que um simples humano — tudo o que emerge da obra da cineasta — foi filmado no Campo Zeppelin e em Luitpold, onde se realizavam as grandes marchas de apoio a Hitler.
Hoje há relva a cobrir as pedras e os alemães usam estes espaços, junto ao lago Dutzendteich, como áreas de lazer. Aliás, se o edifício que nasceu para ser o Centro de Congressos de Hitler está hoje perfeitamente preservado, por albergar o Centro de Documentação, o mesmo não se pode dizer da tribuna do Campo Zeppelin — a única estrutura de todo o plano de Speer a ser efectivamente completa.
Em 1945, os soldados norte-americanos fizeram explodir a enorme suástica que encimava o edifício. E, em 1967, foi a cidade Nuremberga a rebentar com as galerias laterais de colunas da tribuna, por razões de segurança. Hoje, o sítio ainda parece pouco seguro. Há rachas nas pedras e lixo espalhado, além de um aviso que indica que quem subir as escadas, fá-lo por sua conta e risco. “A cidade não sabe muito bem o que fazer com aquilo. Vai pondo uns remendos, um bocado de cimento de vez em quando, mas mais nada”, diz Mireille Markus.
No Centro de Documentação há uma fotografia do avião de Hitler a sobrevoar o Castelo Imperial de Nuremberga. Ele ainda lá está, situado “no único rochedo da cidade”, como a nossa guia não se cansa de repetir, numa posição privilegiada que ajudou a que, até à Segunda Guerra Mundial, “Nuremberga nunca tivesse sido conquistada”. É sempre a subir até às suas muralhas e ao conjunto de casa apaineladas, com as cores vermelho e branco, símbolo da cidade, por todo o lado. Em redor, ainda subsistem algumas das casas mais antigas do centro histórico, incluindo a casa do pintor Albrecht Dürer, que ali viveu entre 1509 e 1528 e onde é possível ver cópias de obras suas, além dos quartos mobilados à época.
Chegamos a Nuremberga com os julgamentos dos criminosos de guerra em mente, e acabamos por não ver o tribunal onde estes decorreram. Não houve tempo. Além disso, a sala 600, onde 21 dos maiores criminosos de guerra nazi foram julgados, ainda é usada como uma sala de julgamentos normal, pelo que o acesso nem sempre é garantido. Algo que poderá mudar no futuro, explica Wolfram Zilk: “No próximo ano vai ser construído um novo Palácio da Justiça, para que o tribunal actual possa ficar livre e ser completamente transformado num museu.” O projecto faz parte da intenção da cidade de candidatar Nuremberga a Património da Humanidade por ter sido ali que, pela primeira vez, foi posto em prática o conceito de julgar os responsáveis pelo destino de um povo (ou de vários povos). A visita ao tribunal terá de ficar para a próxima.
Como para a próxima terá de ficar também a experiência de colocar os pés na areia da praia artificial da cidade. Não tem espaço suficiente para se deitar ao sol, mas, durante oito semanas, pode sentar-se nos cadeirões e deixar que lhe sirvam bebidas largas. Procure-a junto ao rio.
[consulte o guia prático para Nuremberga no final do artigo]
Bamberg
Mil anos de história transformaram Bamberg num cenário de conto de fadas
Era uma vez… Não importa o que se vai escrever a seguir a este início típico dos contos de fadas, mas qualquer texto sobre Bamberg pode começar assim. A entidade de turismo de Bamberg escolheu a palavra “Fascinação” para associar à cidade, criada há mais de mil anos, sobre sete colinas (mas não tem nada a ver com Lisboa) e que celebra, este ano, o 20.º aniversário da sua classificação pela UNESCO como Património da Humanidade.
Em muitos aspectos, Bamberg faz lembrar uma cidade de conto de fadas, mas em nenhum lugar essa sensação se torna mais presente do que quando observamos o edifício da antiga Câmara Municipal, suspenso sobre um dos braços do rio Regnitz. Neste local existe uma ponte desde o século XI e um edifício camarário desde o século XIV. Diz a lenda que os cidadãos que viviam na zona entre os dois braços do rio, ainda hoje conhecida como a Cidade Ilha, pediram aos bispos, que governavam a Cidade nas Colinas, para lá do rio, que lhes cedessem um pouco de terreno para construírem a sua câmara municipal. Como os bispos, detentores de todos os privilégios, se recusaram a ceder um metro de terreno que fosse, os cidadãos da Cidade Ilha aproveitaram um antigo edifício que já existia na ponte e construíram aí a sua câmara.
A casa de madeira apainelada, em branco e amarelo, continua hoje, sobre o rio, estendendo-se, depois, num edifício decorado com frescos ao estilo barroco e rococó (procure a perna do querubim a saltar da fachada) e captando, assim, toda a essência do que levou Bamberg a ser distinguida pela UNESCO: uma cidade com mil anos, que manteve a sua estrutura medieval, enquanto desenvolvia um estilo barroco, que lhe foi impregnado, sobretudo, pelos bispos que governaram a cidade nos séculos XVII e XVIII. A combinação de estilos está presente por todo o centro histórico, que pode (e deve) ser percorrido a pé sem qualquer dificuldade.
A maior parte das igrejas e monumentos encontra-se na Cidade nas Colinas. É aí que fica a Catedral de São Pedro e São Jorge, que remonta à fundação da cidade, pelo imperador Henrique II, em 1007. A primeira estrutura, consagrada, em 1012, foi, contudo, destruída por dois incêndios, e o edifício actual foi concluído em 1237. “A primeira catedral a existir aqui demorou oito anos a ser construída, esta demorou mais de 50, daí notar-se a evolução de estilos”, explica a nossa guia, Carla Provazi-Fischer, uma brasileira de São Paulo casada com um alemão e que vive em Bamberg há anos.
As quatro torres da catedral oscilam, por isso, entre o estilo românico, num dos lados do edifício, e o estilo gótico, no outro extremo. No interior, os turistas fazem fila para fotografar a estátua de autor desconhecido do Cavaleiro de Bamberg (século XIII) e o túmulo do casal imperial, Henrique II e Cunigunda. É também aqui que está o túmulo do Papa Clemente II que, segundo a informação disponibilizada pela própria catedral, é “a única sepultura de um Papa que se encontra a norte dos Alpes”.
No exterior, poucos passos bastam para percorrer alguns dos cenários mais famosos da cidade. O grande adro junto à catedral é o acesso para a antiga residência imperial e dos bispos (o Old Court) — que no Verão se enche de gente para assistir a espectáculos de teatro e de música — e para os edifícios dos finais do século XVII, inícios do século XVIII, conhecidos como Nova Residência. É aqui que está instalado um dos museus mais conhecidos da cidade, com as salas repletas de mobiliário do século XVII e XVIII e frescos a decorar as galerias. É também aqui que se encontra o Jardim das Rosas, um espaço com dezenas de variedades desta flor, que tornam o espaço numa amálgama colorida nos meses de Verão.
A entrada no jardim é gratuita e dali pode ver a cidade de um ponto privilegiado. Tanto aquela que se estende aos pés da colina como aquela que fica ainda mais alta, com o antigo mosteiro beneditino de São Miguel, do século XII, a dominar o cenário.
Pequena Veneza
É na colina abaixo de São Miguel que Bamberg está a tentar recuperar uma das tradições que a industrialização e o crescimento das cervejeiras fizeram desaparecer — a produção de vinho. A produção já deu frutos e o vinho branco e fresco, engarrafado nas tradicionais garrafas bojudas da Francónia, não é nada mau. Hoje, Bamberg é uma cidade industrial (a Bosch tem uma fábrica ali, que emprega mais de oito mil pessoas) e com uma grande produção de cerveja (há nove empresas a produzir cervejas só no centro da cidade), mas a zona à direita do rio ainda é conhecida como a Cidade dos Agricultores e também aí há a tentativa de reavivar velhas tradições.
Carla pega num pequeno galho de madeira e dá-nos a cheirar. “Sabem o que é isto?” Ninguém adivinha, o galho parece apenas isso mesmo — um pauzinho de madeira sem significado especial. Afinal, revela-nos, é um pedaço de alcaçuz. “O alcaçuz era o produto mais produzido na cidade, muito usado para fazer xarope, e vinham pessoas de todo o lado comprá-lo. Mas, no último século, a sua produção quase desapareceu e estão agora a tentar reintroduzi-la”, explica.
Os produtores agrícolas ainda se reúnem, de segunda-feira a sábado, num mercado a céu aberto na Maxplatz( junto ao edifício da actual câmara municipal, na Cidade Ilha), que se estende até à Fonte do Neptuno, em frente à igreja de São Martinho. Mas os verdadeiros apreciadores desta parte da história de Bamberg devem dirigir-se à Cidade dos Agricultores e visitar o Museu dos Agricultores e dos Produtores de Vinho, numa rua sossegada, não muito longe da estação ferroviária.
Nós continuamos pela Cidade nas Colinas. Espreitamos o local da antiga sinagoga, convertida em capela católica no século XV, na Rua dos Judeus, e vemos ao longe o único edifício “puramente gótico” da cidade, a Obere Pfarre, ou Paróquia de Cima, que está a ser remodelada e, por isso, se encontra fechada ao público. A igreja tem uma torre que serviu, até 1928, como ponto de vigia. “O vigilante morava lá em cima, na torre, e tudo o que entrava ali ou saía era por meio de baldes, suspensos em cordas. Diz-se que um dos vigilantes ficou tão gordo que, quando morreu, não passava na porta para as escadas, e teve de ser retirado também amarrado a cordas, pelo exterior”, diz Carla.
Um dia não chega para ver tudo o que Bamberg tem para oferecer. Se quiser entrar em todas as igrejas, museus e lojas de antiquários (há mais de 14 no centro) vai precisar de mais tempo. Mas, se já lhe doem as pernas e ainda não foi à zona conhecida como “Pequena Veneza”, onde viviam os pescadores nas suas casas apaineladas, pode deixar que o conduzam, através do Velho Canal, uma estreita ramificação do braço esquerdo do Regnitzam, numa gôndola. Isso mesmo, Pequena Veneza e gôndolas.
O nosso gondoleiro enverga a típica camisola às riscas dos seus colegas de Itália, mas não canta, apesar de sorrir bastante. Ao contrário dos canais de Veneza, em Bamberg o rio tem áreas com correntes fortes e o passeio não exige nada de nós além de relaxar e apreciar a paisagem, mas obriga o gondoleiro a aplicar muita força para manter o longo barco negro no rumo certo.
Mil anos de história, palácios, casas suspensas sobre o rio e até gôndolas. A cidade merece que lhe dispensem bem mais do que um dia e a história de uma visita a Bamberg pode ser contada de mil maneiras diferentes. Vamos lá tentar outra vez: Era uma vez…
[consulte o guia prático para Bamberg no final do artigo]
Bayreuth
Wagner e Guilhermina, em restauro em Bayreuth
Para Ingrid, Bayreuth é um romance assente em duas personagens centrais: o compositor Richard Wagner e a margrave Guilhermina, princesa da Prússia. Ou, se respeitarmos a linha temporal, a margrave Guilhermina e o compositor Richard Wagner, já que ela o antecedeu em cerca de um século. Mas, como a Alemanha está a celebrar, este ano, o 200.º aniversário do polémico compositor, talvez seja melhor começar primeiro por ele. Até porque Ingrid, a nossa guia, adora falar de Wagner e da sua relação com o rei Luís II, da Baviera.
“Hoje, achamos que Luís II amava Wagner, como um homem ama uma mulher. Hoje podemos dizer que ele era homossexual. Mas Wagner não, Wagner era um mulherengo.” Estamos sentados à mesa de um restaurante decorado como a sala de estar confortável de alguém — “o estilo da Francónia”, revela Ingrid — e a comer comida igualmente confortável, daquela região da Baviera, com a chuva a cair lá fora, quando a nossa guia começa a contar a sua versão do que realmente importa saber sobre Wagner e a sua ligação a Bayreuth.
Não há, no seu discurso animado, nada que relembre os polémicos artigos que o compositor publicou contra os judeus e que levaram a que o seu nome ficasse, para sempre (ainda que não de forma consensual para todos os estudiosos), ligado à ascensão do anti-semitismo na Alemanha e à propagação do ideal da “raça ariana”, que são indissociáveis do III Reich, de Adolf Hitler. Não, Ingrid, morena e magra, a fazer lembrar uma bailarina espanhola, prefere falar de outro Wagner.
Aquele que despertou o interesse e adoração de um rapazinho, quando assistiu às óperas Lohengrin e Tannhäuser, apenas com 15 anos. E que, três anos depois, ao ver-se proclamado rei da Baviera após a morte do pai, chamou para junto de si, em Munique, o compositor, salvando-o, pela primeira, mas não pela última vez, das dívidas e escândalos que o perseguiam.
Para Ingrid, Luís II era “muito fantasioso”. O homem que foi apelidado de rei Louco e que foi destituído pelos seus conselheiros, sob o pretexto de uma loucura nunca provada, apenas um dia antes de morrer misteriosamente num lago tão pouco profundo que a água mal lhe chegava à cintura — e logo ele, que era um exímio nadador —, foi o eterno salvador de Wagner. “Mas sabemos que gastou com ele apenas cerca de um décimo da sua fortuna pessoal e nunca usou dinheiro do Estado”, ressalva Ingrid.
Fechado para obras
Luís II pode ter amado Wagner e ter ficado deslumbrado com as suas óperas, mas foi Guilhermina quem convenceu o compositor a deslocar-se a Bayreuth. Mesmo que já estivesse morta há 114 anos, quando este se mudou para a pequena cidade alemã, em 1872. É que Guilhermina da Prússia (1809-1758), que fora obrigada pela família a casar com o margrave de Bayreuth, revolucionou a cidade com a sua cultura e entusiasmo arquitectónico. Construiu palácios e jardins que, ainda hoje, se encontram entre os mais famosos da cidade, e foi ela que mandou erigir o único monumento de Bamberg classificado pela UNESCO. A Ópera Margrave de Bayreuth foi classificada como Património da Humanidade em 2012, por ser “uma obra-prima do barroco” e a “única inteiramente preservada”, de entre as construções similares que foram erigidas no século XVIII. Infelizmente, está fechada.
E este é o senão de visitar Bayreuth nesta altura — parece que metade da cidade está a ser restaurada e, portanto, inacessível aos visitantes. A Ópera Margrave encerrou já em 2012 e a sua magnífica sala de espectáculos em madeira pintada está a ser alvo de um restauro profundo, orçado em 19 milhões de euros, que só deverá estar concluído em 2017. Hoje, quem tentar visitar o espaço, tem acesso a uma exposição sobre Guilhermina e a família italiana Galli-Bibiena (responsáveis por este e uma dúzia de outros teatros similares, embora só o de Bayreuth tenha sobrevivido). Para consolo, embora fraco consolo, as portas da sala de espectáculos, onde decorrem os trabalhos, estão abertas e deixam ver uma ínfima parcela do que será o espaço, mas o resto está coberto por uma tela, que reproduz o resto da sala, oculta por trás dela.
Por isso, nada da magnífica sala que motivou a distinção da UNESCO. E, em finais de Junho, nada de visitar também a casa onde Richard Wagner viveu durante nove anos, até à sua morte, porque o restauro ainda decorria. Havia, contudo, a expectativa de que a habitação pudesse reabrir ainda este mês. Fechada está também a igreja central da cidade (deverá reabrir no próximo ano) e aquele que, porventura, será o mais famoso espaço de Bayreuth, para os amantes da música — a Festspielhaus ou a Casa do Festival.
Wagner pode ter ido a Bayreuth pela curiosidade de conhecer a Ópera criada por Guilhermina, mas o espaço sumptuoso foi imediatamente posto de lado, pelo compositor, como possível palco para a apresentação das suas óperas. Reentra Ingrid: “Ele decidiu logo que a ópera não era suficientemente grande para os seus espectáculos e toda a decoração distraía o público. Wagner queria um espaço em que o palco fosse o único foco de interesse e foi ele quem inventou o fosso de orquestra coberto e a sala escura do auditório, para que o público se concentrasse apenas no que acontecia no palco”, diz.
Wagner conseguiu que lhe doassem um terreno fora do centro, na denominada Colina Verde, e que financiassem (incluindo, claro, Luís II) a construção da primeira e única casa de espectáculos criada exclusivamente para um compositor. A primeira obra a estrear no local foi O Anel do Nibelungo, em 1876, e Wagner só assistiria a mais um festival na sua casa de espectáculos — o da estreia de Parsifal, em 1882. O compositor morreria no ano seguinte.
Hoje, o Festival de Bayreuth é um ícone incomparável para os amantes da música de Wagner. A lista de espera para conseguir bilhetes é de “oito a 10 anos” e o pedido deve ser renovado anualmente. “Se se esquecer um ano, passa para o fim da fila, de novo”, esclarece Ingrid. Ainda assim, como há sempre imprevistos de última hora, a guia turística explica que durante os dias do festival — que este ano decorre entre 25 de Julho e 28 de Agosto, abrindo com O Holandês Voador e fechando com Tannhäuser — há quem faça fila “desde as 3h, 4h da manhã” na expectativa de alguma desistência. Algo como os portugueses que vão de madrugada para a porta do centro de saúde, na expectativa de uma consulta. Ali, espera-se pelo privilégio de ficar horas, sentado numa cadeira dura e desconfortável, numa sala sem ar condicionado, a ouvir as criações de Wagner.
Entre Maio e Setembro a casa da música de Wagner está fechada ao público, para que se proceda à preparação do festival e ao festival propriamente dito. Mas, adivinhe, este ano a casa também esteve fechada fora desse período porque, adivinhou!, está a ser reabilitada!
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GUIAS PRÁTICOS
Restaurante Brudenmuhle
Uma Schlenkerla, por favor
Goldener Lowe