Há cidades onde é preciso fugir dos lugares-comuns, que são meio caminho para chegarmos a lado nenhum, em termos de correspondência com a sua realidade actual. E há outras cujas história, bandeiras, gastronomia e iconografia funcionam como atalhos honestos, que nos ajudam a descobri-las até para além de eles mesmos. Assim acontece com Munique, mesmo que a cidade também tenha as suas dissimulações. Por exemplo, a capital do estado federado da Baviera é o motor económico do país e a terceira cidade da Alemanha em termos de população, com 1,3 milhões de habitantes, e temos sempre a sensação, mesmo nas mais amplas avenidas, de estar numa urbe bastante mais pequena.
Mas veja-se o caso da cerveja, um dos seus ícones. Não é preciso visitar Munique durante a Festa da Cerveja, a Oktober Fest — que, na verdade, até ocupa mais semanas de Setembro do que de Outubro — para perceber que esta bebida de cevada, ou trigo, fermentada continua intimamente ligada à cidade. Um habitante típico de Munique dirá até que nem é na Oktober Fest, quando a cidade está cada vez mais tomada de turistas que acreditam que entrar no espírito da festa é beber histericamente até cair para o lado, que essa relação é mais perceptível.
É que as coisas têm a sua história e a cada passo se encontra gente disponível para contar que Munique significa terra de monges, em alemão antigo, e que, assim como outros faziam licores, estes faziam cerveja. Sobretudo, Stark Bier, cerveja forte, com mais de 8% de álcool, e substancial. “Pão líquido”, para amenizar o rigor do jejum quaresmal. Conta a lenda que um Papa não achou aquilo bem e quis saber o que era isso que aqueles monges bebiam na Quaresma. Foram-lhe enviados barris, mas a viagem era longa e a cerveja estragou-se. Quando a provou, o Papa terá dito que se era aquilo que os beneditinos de Munique consumiam na Quaresma, bem podiam continuar a fazê-lo, se a sua capacidade de penitência chegava a esse ponto. E os monges aceitaram de bom grado carregar essa cruz.
A Baviera é católica e os habitantes de Munique continuam a penitenciar- se resignadamente. A heráldica oficial da cidade mostra um monge beneditino com uma Bíblia na mão, mas não faltam edifícios públicos, mesmo antigos, onde o monge aparece com uma caneca no lugar do livro. A cidade tem centenas de Biergärten, jardins de cerveja, onde, com um bocadinho de sol, as mesas sob os castanheiros se enchem de gente que pode levar a sua própria comida e comprar apenas a cerveja no respectivo quiosque. É normal pedir-se para partilhar a mesa com os desconhecidos, que os bávaros são relativamente informais, para os padrões alemães. Aliás, têm fama de ser mais alegres e espontâneos e de, além de um dialecto e de um sotaque acentuado, terem um linguajar mais colorido.
As grandes cervejarias, como a Hofbräuhaus (Platzl), fundada em 1589 para satisfação de Guilherme V, do Ducado da Baviera, que não gostava da cerveja que então se fazia em Munique, ou a Löwenbraukeller (Stigmaierplatz), fundada em 1883, também têm Biergärtens. A Hofbräuhaus, com os seus tectos pintados, é muito mais bonita por dentro. O edifício da Löwenbraukeller é o mais bonito por fora. No interior ou ao ar livre, provem-se alguns produtos tradicionais, como a Weiß Bier (cerveja branca), feita com trigo — que, passe o paradoxo, pode ser branca ou preta (Dunkel) — ou as salsichas brancas (Weißwurst) que se acompanham com mostarda doce (Bretzel) e Pretzel, duas argolas de pão estaladiço com pedras de sal à superfície.