Fugas - Viagens

Pilar Olivares/Reuters

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O Peru do direito e do avesso

De qualquer forma, quer-nos parecer que todas as ruas vão dar ao mesmo sítio. Andamos sem mapa a descobrir outros poisos, mas cá estamos, de novo. E acabamos por aceitar o convite de uma funcionária sorridente e subimos ao Plaza Restaurant, com uma vista impagável para a praça. Pedimos um chocolate quente e, com ela a mirar-nos, do outro lado da rua, passamos em revista a visita da manhã à catedral de Cusco. É um must see da cidade. Construída a partir de 1559, numa empreitada que se prolongou por perto de 100 anos, é um dos principais repositórios em Cusco de arte colonial, assegura o guia Lonely Planet do Peru. Foi edificada em cima do palácio de Viracocha, o oitavo inca, com pedras que os colonizadores espanhóis transportaram das ruínas de Sacsayhuamán, um impressionante exemplo de arquitectura militar inca.

Quando conceberam Cusco, que se tornaria a capital do império, os incas pensaram-na em forma de puma (o primeiro inca foi Manco Cápac, que reinou no século XII, mas terá sido Pachacutec, o nono inca, já no século XV, e depois de um período expansionista, a fundar a cidade, elucida o Lonely Planet). Sacsayhuamán foi idealizada como a cabeça do animal, o templo de Koricancha como a cauda e Cusco em si — Qosq’o (o centro do mundo) em quíchua, a língua-mãe dos incas, ainda hoje amplamente falada no Peru — , como o seu corpo. Visite-se Sacsayhuamán, numa colina sobranceira à cidade, e o Koricancha, bem no centro de Cusco, sem pressas de qualquer espécie e estará feita a introdução básica à cultura inca, fundamental para se entender o passado e o presente do Peru.

Este presente é também o que se lê nos jornais. Deixámos a praça para trás e viemos parar à Biblioteca Municipal de Cusco, na Calle Santa Catalina Ancha. Está praticamente lotada — a sala principal sobretudo com estudantes, a zona de hemeroteca com pessoas de várias idades, mas todos homens, que lêem desde o La Republica até ao La Primera, passando pelo Peru 21 ou El Comercio. Um destes homens, com um boné preto enfiado na cabeça, tira apontamentos das notícias do El Sol num caderno quadriculado. “Almacenarán cinco millones de agua en Ccorcca”, é o título do artigo que lê.

Juan José, 34 anos, lê o futuro na soleira da porta da biblioteca. De auscultadores nos ouvidos, parece indiferente a tudo o que se passa à sua volta. Fica assim quando desenha, como se o mundo fora do papel que tem na frente não existisse. Não é antipático, mas é pouco expansivo. Nunca o vemos sorrir, raramente nos olha de frente — como se realmente não houvesse vida para além daquele rosto que está a esculpir a lápis. Veio de Tacna, bem no Sul do Peru, há uns 10 anos, porque em Cusco “é mais fácil fazer negócio”, e já sente a cidade como sua. Seja como for, também diz que não precisa de muito: vende os quadros a 30 ou 40 nuevos soles, qualquer coisa entre os 7 e os 10 euros, e sente-se mais ou menos satisfeito. Desenha aquilo que os turistas, os seus principais clientes, mais procuram: motivos incas, reproduções de Machu Picchu, o grande íman do Peru, paisagens do país. Desde pequeno que trabalha com “artesanías” e sabe que nunca há-de sair do ramo. “É para isto que tenho jeito, o meu futuro também há-de ser aqui.”

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