A praia perde-se de vista, uma imensidão solitária, não fosse a nossa chegada. A praia é toda nossa, quilómetros e quilómetros de um areal puro, banhado por águas mornas que chegam em ondas musicais.
Calções de ganga, t-shirt amarela, sorriso estampado, guitarra na mão, Tibo Évora entra pelo mar adentro, dedilhando a banda sonora deste Atlântico africano. Os seus passos acompanham o vai-e-vem das ondas no esplendor dos mais de 18km da Praia de Santa Mónica, o areal onde chegaram os portugueses em 1480, e o seu canto crioulo cheiinho de um português caloroso faz-se de sodade, de evocações do mar, de viagem, de esperança. Há algo no seu olhar, na sua voz, que transporta os cruzamentos cabo-verdianos, das suas culturas e contrastes; há algo no seu porte que, nascido em França mas com origens cabo-verdianas e que recentemente decidiu regressar à terra das raízes, resume muito passado e muito futuro da Boa Vista, um quase deserto no meio do mar cercado de praias por todos os lados e cuja força magnética, entre o clima temperado ao logo de todo o ano e imagens de praias infinitas num cenário de areias finas, azuis e verdes irreais, atrai cada vez mais turistas.
Tibo vai musicando as nossas deambulações pela Boa Vista, uma viagem que será sempre musical - mesmo quando a banda sonora é vento, mar e vozes -, com passagem pelos resorts que são cidadelas tudo-incluído, pelas ruelas de vilarejos, pelas dunas imperiais que vão do deserto ao mar, pelos caminhos que vão da riqueza à pobreza, da terra batida ao alcatrão a reluzir de novo.
É um mergulho numa Boa Vista em efervescência, que o fado desta ilha - que terá visto nascer a morna e que também para as tartarugas é um berço - já está traçado: o turismo, como onda imparável. A razão que nos voa até aqui, a primeira ligação aérea internacional regular, o Lisboa – Boa Vista pela TAP, só vai ajudar à festa, contribuindo para o aumento contínuo dos turistas que chegam aos resorts existentes e aos vários projectos em andamento, ao mesmo tempo que poderá servir para motivar mais viajantes independentes a partir à descoberta desta a que o escritor cabo-verdiano Germano Almeida, aqui nascido, chamou de “ilha fantástica”.
Agarrem-me, senão eu mergulho
"Não precisam de levar calções ou fatos de banho que o programa não inclui entrar no mar". Ele há frases que são como um balde de água fria nos planos de uma pessoa. Particularmente esta, dita no abafo tropical da Boa Vista, um círculo bordeado por 55km de praias à medida dos sonhos de cada um. Por estes dias, a ilha das dunas (apodo acertado, que são imponentemente belas) aquece-se com um céu sarapintado de nuvens e de vez em quando uns raiozinhos de sol (que quando furam, furam e queimam, queimam).
Mas, na verdade, o mar, apesar da imagem sedutora, nem se apresenta muito convidativo; tem andado agitado, matreiro, espécie de jogo de cintura em versão funaná. Os avisos de "cuidado com o mar" repetem-se e está visto que a nossa guia-mestre, a simpática Wanda, não quer perder nenhum viajante mais atrevido para as garras do Atlântico. E não desarma: "hoje está perigoso". É que quando este mar não está claramente mansinho, e saímos da segurança das baías, há que ter mais cuidado com ele, que entre correntes e ondas que “puxam-puxam, é arisco.
Sentados na caixa aberta da nossa pick-up (e havemos de passar o tempo entre várias, que é um dos transportes a que estes caminhos obrigam), vagueamos pela ilha, pisamos o deserto, acenamos a palmeiras perdidas, cruzamos oásis de tamareiras, vamos conversando pelas terras, surpreendemo-nos com resorts que parecem miragens surreais no meio do nada, atravessamos muitas terras secas e poucas terras férteis, calcorreamos solos marcianos e dunas lunares, cumprimentamos outros viajantes de carrinhas e das mais barulhentas e intrusivas moto 4.
Entre cada vírgula, a praia, as omnipresentes praias, largas como o mundo, dezenas e dezenas delas envolvendo toda a ilha (mais de metade das praias do arquipélago de Cabo Verde estão aqui) de areias finas, branquinhas ou douradas, bordejadas por águas translúcidas, um azul-turquesa que, claro, havemos de descobrir quentinho (varia ano fora entre 20 e 25 graus…). Quase sempre, sem ninguém (ou quase) à vista, que, à excepção de alguns povoados, o grosso da população reside na capital, Sal Rei.
Andamos de praia em praia já vindos dos 6km da "nossa" praia de Chaves, zona de desenvolvimento turístico com uma linha de resorts, onde se inclui o que nos alberga, o Iberostar, eficiente complexo com areal aos pés que, como os seus vizinhos, é uma verdadeira cidade balnear sob regime tudo-incluído. Poderíamos ter ficado por ali, como muitos milhares dos turistas deste sistema que domina os programas de férias locais, entre os restaurantes que cozinham especialidades locais com internacionais, piscina perfeita com contorno para o infinito, spa ou bares de piscina ou de praia, preguiçando numa quente brisa enquanto os animadores de serviço motivam os turistas para a dança ou para os jogos, espreguiçando nas camas colocadas no areal à beirinha da água. Para quem é adepto do TI e quer dar-se o luxo de uns dias sem mexer um dedo, a ilha é um paraíso a ter em conta e há meia dúzia de cidadelas turísticas (e outras em desenvolvimento) artilhadas com toda a preguiça a que se tem direito. Mas, vá, faça como nós e meta-se também ao caminho para descobrir outras essências da Boa Vista. Não é fácil e há que ter em conta que pode ser demorado, já que embora a ilha tenha ligações por estrada alcatroada, as passagens a muitas das boas vistas que procuramos são por caminhos empedrados e maioritarimente de terra (mais e menos) batida e/ou esburacada, pela areia e por nuvens de pó.
Nas areias do tempo
Custa, mas esqueçamos por momentos a praia. Sigamos antes directos para o deserto. Sim, há um deserto no meio do mar. Nesta ilha de pouco mais de 620km2, com uns 29km de largo por 30km de comprimento, a meio milhar de quilómetros do continente africano, cabe o real Deserto de Viana, que avança pelo noroeste da ilha, no interior da Ribeira de Estância de Baixo.
É a surpresa chamada Sara: desse gigante africano, trazem os ventos as areias que aqui se elevam branquinhas e finas, erigindo dunas clarinhas, corredores e abruptos vales. Coisa monumental onde, tal como as areias, parecem chegar trazidos pelo vento os vendedores senegaleses, que dominam o comércio do artesanato por toda a ilha. “Costumo dizer que daqui, este artesanato só tem a areia”, há-de dizer-nos fonte local bem informada. Mas já iremos ao verdadeiro artesanato. Para já, o certo é que senegaleses e deserto do Sara, esculturas em madeira de modelares africanas e máscaras tribais, aqui e agora, parecem casar-se em onírica perfeição.
Do deserto, vamos por entre palmeiras solitárias e tamareiras, cruzando paisagens que a muitos lembram imagéticas lunares ou marcianas. Quase por toda esta plana ilha se repete o cenário entre planícies e algumas elevações áridas, montes e rochas despidos, caminhos que fazem lembrar um qualquer Velho Oeste onde por vezes desponta um casoto, uma ruína, um resort abandonado a meio fazer, uma capela, deambulam burros ou cabras e caranguejos cruzam as estradas.
Rumo a sul, seguimos para outra aventura sariana, Morro de Areia, reserva natural que no seu sobe-e-desce de dunas à beira-mar plantadas garante uma montanha-cabo-verdiana de adrenalinas sublinhadas pelo mais perfeito postal ilustrado do Atlântico. E, lá abaixo, um colar de pérolas, entre praias como Santa Mónica, Curralinho ou uma imaculada Praia da Varandinha, que, além de formações rochosas que nos fariam acreditar que um deus-Gaudí andou por aqui, guarda uma espantosa e profunda gruta, a Bracona, uma boca que se abre sob as rochas e nos enche de sombra, bênção para o calor do meio-dia. Deixamo-nos ficar lá dentro, onde, nas rochas, locais e visitantes não resistem a desenhar e grafitar os seus “estive aqui” criando uma estranha galeria de rabiscos, enquanto admiramos a praia com esta moldura de obra divina.
Pelos caminhos tortuosos, que já nos massacraram o corpo a todos, avistamos a meio do nada, uma igrejinha ou uma capela (Nossa Senhora da Conceição ou Santo António), alva e altaneira, perto da bem baptizada Povoação Velha (é que se trata da localidade mais antiga da Boa Vista, logo fundada em 1620). Num ambiente quase adormecido, um largo e ruelas de casas baixinhas em cores suaves, de vez em quando um azul, rosa ou amarelo queimados pelo tempo, uma mercearia, uma fachada decorada a pedra ou as mais chamativas casas de souvenirs com desenhos gritantes. Uma boa paragem por aqui é o bar-restaurante Fon’Banana. Nós só ficamos para um descanso na esplanada mas garantem-nos os gurus locais que há noites de festa rija, com jantaradas tradicionais e música ao vivo, como aliás é tradição pelos vários hotéis, cafés e restaurantes da ilha.
Por estes lados e pela orla de praias, sentimos os tremores dos turistas que optam por trajectos mais tresloucados em motos4 e que, não raras vezes, cortam por caminhos desaconselhados, não só perturbando os sistemas dunares como chegando a destruir terras de cultivo ou afectando áreas de desova das tartarugas, ícones da ilha e cuja nidificação é salvaguardada pela ilha. “Os turistas passam e para o povo fica o pó”, há-de dizer-nos mais tarde José Tavares, coordenador da Fundação Tartaruga, uma das organizações que se dedica à protecção destes animais, a propósito tanto deste problema de desrespeito pelas zonas protegidas como das queixas que se vão ouvindo de que parte da população não recolhe os benefícios do turismo à medida que os grandes empreendimentos vão ocupando troços da costa.
O sal na carapaça
Entre dias passados por mergulhos nas praias e deixando-nos ficar em quase siestas à beirinha destas águas que se sentem como lençóis quentes, aproveitando os luxos resort ou a opulência de bares e restaurantes sempre a servir, vamos intervalando com incursões pela ilha, com cada descoberta a surpreender ainda mais, conforme o olhar se vai habituando a descobrir a minúcia entre o tal contraste praia-deserto.
A sul, havemos ainda de cruzar pristinos caminhos para admirar mais praias (que a lista é mesmo infindável), com passagem pela de Lacacão até à do Curral Velho, larguras de areais uma vez mais espantosamente só nossos, à beira da Reserva Natural da Tartaruga que segue ao longo de todo o flanco leste da ilha. Do nada, surge-nos outro colosso turístico, o Riu Touareg, que parece uma gigantesca série de castelos de areia. Por aqui, planeia-se também uma das novas estrelas imobiliárias locais, o resort de Lacacão, cujos anúncios vamos vendo por quase todo o lado e que até inclui golfe.
Os nossos passos seguem pelo larguíssimo areal com os olhos num dos muitos ilhéus que circundam a ilha. Aqui, apesar de estarmos já no fim da época da desova das tartarugas, ainda permanecem as marcas na areia desenhadas pelos milhares de tartaruguinhas que, assim que nascem, nadam pela vida e pela areia rumo às águas. Junto à praia do Curral Velho, um sinal destes contrastes dos tempos de Cabo Verde, a aldeia homónima, abandonada desde os anos 80, vazia, um conjunto de velhas casas em ruínas com o seu quê de decadência romântica. Ainda há-de vir a tornar-se um poiso para turistas. Ente o cordão dunar, palmeiras e o vilarejo – onde a cada Verão se realiza um singular festival musical e gastronómico para matar as saudades –, um espelho de sal como um lago, entre secura e humidade, a faiscar ao sol.
Com esta imagem no olhar, não nos admira que milhares de tartarugas, símbolo global da Boa Vista e uma das maiores atracções turísticas, escolham a ilha para desovar. A tartaruga Caretta caretta (tartaruga-comum) é a espécie rainha, com milhares a acorrerem dos princípios do Verão aos finais de Outono à praia. Um espectáculo natural sem preço, mas com muitos riscos. Ameaçada de extinção, luta pela vida contra inimigos no mar e em terra: os ninhos são ameaçados de formas várias, desde os caranguejos até bandos de gatos selvagens e, claro, o homem, sejam os habitantes locais habituados a ver a tartaruga como alimento e lucro (sendo que hoje em dia é proibida a caça ao animal), sejam os turistas.
A Fundação Tartaruga é uma das organizações que se dedica a proteger os ninhos, e, como as restantes, desloca-os para cercos protegidos, patrulha praias, desenvolve acções de sensibilização e, no caso, envolve populações em brigadas de protecção. “O povo tem que sentir que vale a pena manter a viva a tartaruga, tem que sentir o impacto directo dessa defesa”, diz-nos José Tavares, da fundação, enquanto vamos calcorreando o areal com os traços das barbatanazinhas.
O peso turístico da tartaruga é outro factor: fazem-se visitas guiadas, elucidam-se e encantam-se os turistas com as visões das mães e seus milhares de filhotes. Mas Tavares é também crítico do “abuso”, porque o primordial é “proteger as espécies”. Aqui, entram em campo tanto as libertações diurnas das tartarugas para deleitar turistas que assim as podem ver melhor (as tartaruguinhas devem ser libertadas à noite) como a necessidade de impor medidas que protejam as reservas naturais e o equilíbrio do crescimento do turismo com a defesa dos animais. E “os hotéis muito perto das praias das desovas”, até as suas luzes brancas ou mobiliário, são um problema.
Apesar de estarmos por aqui já no final da época da desova e não termos, nem por sorte, direito a ver uma grande tartaruga na praia, é numa noite cerrada como breu que cruzamos a ilha para, pelo menos, saber mais deste ícone da Bubista. Com a Naturália, que se dedica ao turismo sustentável local, rumamos a um acampamento da Bios CV, outra das organizações que se dedica à protecção ambiental. Não há uma única luz, tirando pequenos focos de lanternas. “É para não confundir a tartaruga, nem luz nem barulho”, explica-nos Lamine Drame, um dos responsáveis pelo trabalho em campo. Connosco, apenas um pequeno grupo familiar de franceses, onde três miúdos fazem, com o silêncio possível, a festa da expectativa, apesar do aviso algo desapontante de Lamine: “Não prometemos ver qualquer tartaruguinha, que vocês chegam no fim da época”.
Mas temos direito a aprender tudo sobre as tartarugas e estes acampamentos, onde também acorrem anualmente muitos jovens em busca do volunturismo. Um aprofundado briefing explica a vida das tartarugas no mundo e na Boa Vista enquanto no ar paira a inquietação dos pequenos turistas que só querem ver os bichinhos: “se um ninho eclodir, sim, se não, não”, garante Lamine a cada inquietação.
E, no escuro e silêncio insular, o milagre ocorre. Serão umas onze da noite quando umas dezenas de tartaruguinhas decidem-se a furar um dos poucos ninhos alinhados numa das “maternidades” e onde seguranças velam todo o dia pela sua segurança. Num alguidar, recolhem-se as recém-nascidas e furamos todos em silêncio religioso pela noite rumo à praia. Os petizes franceses não cabem em si de alegria quando sentem nas mãos duas ou três tartaruguinhas que, como as manas, não param de dar às barbatanas como lhes manda a intuição.
A dois passos das ondas, Lamine vai libertando todos os pequenos répteis, invadido por mil e uma perguntas dos jovens turistas. E uma minha, se o turismo das tartarugas não poderá, ironicamente, afectar a sua protecção. “É um jogo de equilíbrio”, diz-nos Lamine. “Há o lado da sensibilização, de permitir ao turista vir e ver e de o povo perceber que a tartaruga viva traz esse dinheiro”, resume, salientando ainda que “o que o turista paga pelas visitas guiadas é essencial para mantermos todos os acampamentos e projectos”. O certo é que a imagem dos animais a seguirem a sua vida e levados pelas ondas, temos a certeza, nunca mais nos abandonará. Nem àqueles petizes franceses que, apostamos, serão defensores das tartarugas para sempre. Afinal, tiveram há momentos a sua vida nas mãos.
As mãos que embalam a ilha
E, a verdade, é que, na Boa Vista, parece termos sempre uma tartaruga nas mãos ou nos olhos, a lembrar-nos que ela é já “o” ícone local (e a lembrar a todos que vale mais viva e protegida que desaparecida…). Seja por fotos, desenhos, murais, posters, t-shirts, canções ou, claro, souvenirs. Neste momento, temos na mão uma tartaruguinha amarela, outra azul-eléctrico, outra vermelho-sangue. São é de barro.
Estamos na vila do Rabil, a dois passos do aeroporto e do nosso resort na área da praia de Chaves. Com dunas e palmeiras de um lado, a vila é uma paz de ruas empedradas com uma bênção: a ribeira do Rabil. É aqui que encontramos a defesa do velho e novo genuíno artesanato local. Graças à Escola de Olaria, nascida duma fábrica dos anos de 1960. Uma velha arte que hoje em dia se põe ao serviço da preservação de peças locais e, claro, das recordações para os turistas que, ainda assim, acossados pelas praias, aldeias e capital com souvenirs de proveniências estranhas, não o preferem. “Temos ainda que chegar melhor ao turista”, desabafa Adolfo Gonçalves, um dos artistas desta arte ancestral da ilha.
“Aqui temos o melhor barro de Cabo Verde”, garante, enquanto nos mostra outro milagre local: na oficina, não há nem a velha roda de oleiro. Nem nunca houve: uma vez criado o molde é tudo formatado só à mão. Como saem direitinhas as formas arredondadas, é um segredo deles. Meia dúzia de artistas prosseguem as suas criações na sombreada e barrosa sala, enquanto aguardam por “mais apoio e maquinaria”. E mãos, “que faltam os jovens, que já não querem saber disto”, queixa-se Adolfo. Já houve programas de formação, “mas eles preferem ir para o turismo”. Ainda assim, na lojinha ao lado, perfilam-se todos os souvenirs e utensílios que se quiserem, de todas as tais tartarugas a baleias e tubarões, mãos para segurar telemóveis, esculturas, potes e cinzeiros e vasos ou até Garfields e Hello Kittys…
A questão do artesanato é “fulcral para a identidade” de Cabo Verde, há-de resumir-nos Wanda Fernandes, que além de ser directora de operações da Barracuda Tours – operador responsável por alguns dos nossos passeios por aqui e com vasto programa turístico na ilha (e não só) -, é também artesã e designer, já com uma colecção de têxteis criativos e contemporâneos e loja em Sal Rei. Para resolver a questão, Wanda e colegas artesãos querem criar uma associação dedicada ao artesanato realmente feito na Boa Vista. O projecto está em andamento e passa por formar jovens, desenvolver e preservar tradições, “ e produzir localmente o que é parte da nossa cultura”, sublinha. Se tudo correr bem, os turistas das próximas temporadas já poderão apreciar mais vivamente o artesanato local.
É em Sal Rei que encontramos uma das experiências de aproximação dessa cultura do artesanato, vinda da olaria de Rabil. Alcides Morais abriu a sua loja para turistas junto ao restaurante Alísios, na esplendorosa faixa da Praia do Estoril. Chama-se “100% Made in Boa Vista” e o artesão recebe-nos com um sorriso tímido. “Estamos chegando ao turista, vamos no bom caminho, não é fácil”, vai-nos dizendo enquanto nos mostra uma miríade de criações. Numa das paredes, um cartaz: em inglês, recorda-se que “o salário médio no país “é 150 euros”, “é por isso que as gorjetas são bem-vindas”. E seguem-se três pontinhos de exclamação neste lembrete do contraste entre o que o turista paga pelos luxos da Boa Vista e a luta local pela sobrevivência.
A ilha tem vivido, de facto, um desenvolvimento desenfreado nos últimos anos. O aeroporto internacional foi inaugurado em 2007 e posteriormente ampliado. Aos voos charters ou via a mui turística ilha do Sal (que a Boa Vista já ultrapassou em número de visitantes) soma-se agora a rota directa da TAP a Lisboa. O alcatrão avança à medida dos novos projectos turísticos (os actuais já oferecem mais de cinco mil quartos e há vários resorts em andamento), os turistas são já mais de 200 mil por ano (quatro vezes mais que em 2008), a população residente cresce ao mesmo vertiginoso ritmo: terá quase triplicado nos últimos 13 anos, de 4209 pessoas em 2000 para 9612 em 2010, segundo números oficiais, e, dizem-nos no terreno, é possível que já ande pelas 12 mil, uma população que se fica, estima-se que uma metade dela, pela capital Sal Rei, arrumadinha e bem disposta, onde, anexo, cresce à medida da chegada dos que procuram trabalho vindos de outras ilhas e países africanos um bairro apropriadamente conhecido como Bairro da Barraca (mas oficialmente Bairro da Boa Esperança), onde se aglomeram casas e casotos sem condições ou infraestruturas de água, luz ou saneamento básico. Num país que se prepara para um salário mínimo de 100 euros e que tem o turismo como força motriz da nova economia, as autoridades têm em marcha planos de requalificação para o bairro, além de projectos sociais e desenvolvimento gerais que acompanham a chegada de mais investimentos turísticos. De tantos anos esquecida e isolada, a Boa Vista passa a estrela do turismo internacional. Mas as dores deste parto prosseguem.
Não esquecemos esta realidade enquanto mergulhamos como que na perfeição nas águas da praia do Estoril, uma calmia num baixio que nos cobre de água quente transparente, numa linha ordenada de restaurantes, hotelaria e esplanadas de topo. É com os olhos no ilhéu que guarda as ruínas do Forte Duque de Bragança, memórias das antigas defesas portuguesas, que passeamos pela capital da Bubista, colorida pelos barcos de pescadores e pelas casas que guardam traços coloniais.
A vida corre calma, entre a esplanada central à volta da qual tudo se joga, os mercados de frutas e vegetais e de peixe, as ruelas calcetadas, entre as cachupas e o caleidoscópio de peixes frescos que parecem sair do mar para as mesas, os turistas que se preparam para o windsurf e o catamarã que circunda a ilha em volta turística, os sons de mornas e coladeras que nos chegam de algures, talvez um músico a ensaiar para um qualquer concerto nocturno.
Havemos de enterrar os pés na areia no Morabeza, perto da cidade, para um atum fresquinho e, mais que isso, havemos de celebrar a ilha na Ca Nicha, restaurante que se nos abre com um festim de lagosta suada para uma noite regada às mornas genuínas e reais do Romeu, como é conhecido José Carlos Mosso, director da escola de música municipal e pesquisador da música que a sua ilha deu ao mundo.
“Rochas à vista”, canta Romeu, enquanto a sua “sodade” continua a ecoar-nos na memória e à lembrança nos vem uma metáfora de mudança, lenta e rápida, da vida da magnética Boa Vista, uma imagem que se tornou iconográfica da ilha e do país: no nordeste da ilha, na praia de Atalanta marcada pela vida das tartarugas, naufragou em 1968 o cargueiro espanhol Cabo de Santa Maria (nome pelo qual a praia também é conhecida). O seu esqueleto ergue-se transcendental no mar e é parte obrigatória nas excursões turísticas. O tempo vai-o alterando sem nunca chegar a afundá-lo. Mantém-se estoico, como que num limbo entre passado e futuro. Afundará ou ainda acabará por tornar-se obra de arte?
Guia prático
Como ir
A TAP assegura desde Outubro voos directos Lisboa - Boa Vista às terças e sábados, ida-e-volta desde cerca de 500€ (do Porto ou Faro mais cerca de 42€). Há também voos via Sal com TAP ou a companhia cabo-verdiana TACV. Entre os operadores turísticos (casos de Abreu, Solférias ou Soltrópico), programas de sete noites por pessoa em ocupação dupla, dependendo do hotel e regime (alojamento e pequeno-almoço a tudo-incluído) e crianças poderá ir, voo incluído, de valores promocionais de cerca de 600€ a cerca de 1500€. Já os programas de réveillon ou períodos nobres de férias (muito concorridos) podem facilmente duplicar estes valores.
Actividades e deslocações
Excursões e passeios pela ilha (em carrinhas, jipes, moto4, etc.), mergulho, observação de tartarugas e (Maio a Setembro), baleias (Fevereiro a Maio) ou golfinhos e tubarões, surf, kite e windsurf, pesca, viagem de catamarã em redor da ilha, noites especiais de gastronomia e música. Todos os hotéis e operadores (como a Barracuda Tours, www.barracudatours.com) disponibilizam estes programas. Para observação de tartarugas (época de Maio a Setembro) poderá também contactar a Naturália (www.naturaliaecotours.com) ou associações como a Fundação Tartaruga (www.turtle-foundation.org), Natura 2000 (caboverdenatura2000.com) e BIOS (www.bios.cv). Além de viagens em grupo ou rent-a-car, um taxista de carrinha pode custar 10€ por deslocação simples, 40€ uma manhã ou até 100€ um dia dependendo das zonas e distâncias.
Informações úteis
Além do escudo de Cabo Verde, o euro é corrente (1€=110.265 escudos cabo-verdianos).
É aplicada uma taxa hoteleira a cada turista com mais de 15 anos: 2€ por noite.
O visto, pedido em Portugal custa 44,20€ e pode tardar três dias.
O clima é tropical seco, temperatura média do ar a 26º (varia poucos graus), da água entre os 20 e 25º. Estação seca de Novembro a Julho (ventoso) e húmida de Agosto a Outubro (Agosto/Setembro é tempo das chuvas mas habitualmente há baixa precipitação. Ainda assim, em 2013 a chuva deu de si e em Setembro de 2012 foi foi forte o suficiente para cheias e destruir a ponte de Ribeira D'Água, que liga a ilha, dificultando ligações entre capital, resorts, aldeias e aeroporto. As chuvas este ano também dificultaram obras e acessos. Quando por lá passámos, usava-se uma via alternativa e trabalhava-se na construção de nova ponte).
Onde ficar
Ficámos instalados no Iberostar Club Boa Vista, 5 estrelas tudo-incluído na zona (e frente) da praia de Chaves.
Na ilha, encontram-se outras opções de resorts de luxo tudo incluído, casos de dois Riu (Karamboa, na zona de Chaves, mais próxima de Sal Rei; e Touareg, zona isolada de Lacacão) ou Royal Decameron (praia de Chaves).
Para um resort que possibilita só alojamento (além de outros regimes): Marine Club (praia da Cruz, Sal Rei). Na capital, também o Hotel do Estoril (frente à praia).
Para opção design: Migrante Guest House (um estilo Marrocos contemporâneo, no centro da capital) e Spinguera Ecolodge (um derradeiro luxo ecológico, no Parque Natural do Norte da Boa Vista, casas em pedra numa aldeia recuperada à beira-mar).
Onde comer
Marisco e peixe fresco (muito atum, serras, garoupa, espadarte, etc.) são obrigatórios, para a tradicional cachupa o melhor é reservar antes, não deixe de fazer um festim de lagosta grelhada ou suada (com festa pode variar entre 30 e 50 euros) e provar o queijo de cabra, especialidade local.
Ca Nicha: Sal Rei, T: +238.251.10.75
Morabeza: Praia João a Sal Rei: T: +238.91.560.50
Alísios: Praia do Estoril, Sal Rei. T: +238.987.78.81
Blue Marlin (Ca Santinha): Sal Rei, T: +238.992.38.71
Fon'Banana: Povoação Velha, T: +238.251.18.71
Sodade di Nha Terra: Rabil, +238.251.10.48
A Fugas viajou a convite da TAP, com o apoio do Iberostar Club da Boavista, Barracuda Tours e TUI de Portugal