Um livro que é mais do que uma narrativa de viagens
Há numerosos estudos sobre a Peregrinação, em Portugal e no estrangeiro, que abordam temáticas cruciais para o entendimento da obra: a biografia do autor, a relação do texto com a realidade (o valor documental) e o significado histórico e ideológico do livro, o que remete para as intenções de Fernão Mendes Pinto ao escrever um relato que consubstancia, também, algumas das primeiras percepções europeias sobre o Oriente.
Parece consensual a ideia de que certas passagens do livro constituem crítica cultural indirecta (Eduardo Lourenço) e que Fernão Mendes Pinto recorreu à “utilização como espelho das religiões e culturas orientais para crítica ao próprio Cristianismo e aos propósitos e comportamentos portugueses na expansão”, um espelho “positivo ou negativo dos vícios e absurdos da civilização a que pertence o autor” (António José Saraiva).
Fernão Mendes Pinto fê-lo de forma subtilíssima, atribuindo sempre as críticas aos personagens orientais. O rei dos Léquios (sul do Japão) dizia que os portugueses eram gente “que, conhecendo muito de Deus, usa pouco da sua lei, tendo por costume tomar o alheio”. Um marinheiro da Cochinchina, ao ver chegar o barco de António de Faria, exclamou: “Grande novidade deve ser esta com que Deus agora nos visita, e queira ele por sua bondade que não seja esta nação barbada daqueles que em seu proveito e interesse espiam a terra como mercadores, e depois a salteiam como ladrões!” Um ermitão chinês, durante o saque a um templo feito por António de Faria, lamenta: “Certo que agora vejo o que nunca cuidei que visse nem ouvisse, maldade por natureza, e virtude fingida, que é furtar e pregar. Grande deve ser a tua cegueira, pois confiado em boas palavras, gastas a vida em tão más obras”. Noutra pilhagem, uma criança desabafa, com a agudeza de um adulto, a sua indignação: “Bendita seja, Senhor, a Tua paciência, que sofre haver na terra gente que fala tão bem de Ti, usa tão pouco da Tua lei, como estes miseráveis que cuidam que furtar e pregar Te pode satisfazer…”.
Esse jogo de artifício (que “recupera” de memória falas ouvidas décadas antes – o livro foi escrito mais de dez anos depois do regresso do Oriente) terá passado até pela invenção do personagem António de Faria, figura violenta e impiedosa que, sugere Aquilino Ribeiro, “pode não ter tido existência real, constituindo um fingimento literário…”. A invenção de tal personagem serviria para evocar actos condenáveis dos navegadores e comerciantes portugueses nos mares do Oriente, esses “aspectos sombrios da nossa expansão” (Hernâni Cidade). Também certas características da sociedade portuguesa não escaparam à crítica. Pinto escreve que “claramente se pode afirmar que o galardão da nação portuguesa mais consiste e mais pende da aderência que do conhecimento da pessoa”. O termo “aderência” referia-se ao sistema de troca de favores, que se sobrepunha ao merecimento e valor pessoal.
Quanto à personalidade de Fernão Mendes Pinto, Maurice Collis, antigo diplomata britânico na Birmânia e tradutor da Peregrinação, define assim o seu autor: “Vivendo numa época de extremo fanatismo religioso, não era fanático; num período de vistas estreitas, era liberal; nascido em tempos de crueldade e de prosápias, era bondoso, sensato, sem vaidade e profundamente humilde”. Rodrigues Lapa gabou-lhe a “capacidade de imersão numa realidade diferente”. António José Saraiva, sublinhando a diferença entre o olhar de Fernão Mendes Pinto e o do exotismo europeu do século XIX, que compara ao do turismo, elogia a sua “capacidade para captar a grandeza e a variedade do mundo”. O historiador português salienta que Pinto se liga “a toda uma literatura que culminou no Iluminismo”. Outro tanto diz Jaime Cortesão, ao afirmar que Fernão Mendes Pinto “vai aparecer-nos como um admirável precursor do espírito moderno, nas suas tendências naturalistas e amplamente humanísticas”.