Fugas - Viagens

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  • Chiang Mai é uma cidadezinha de província, é verdade, mas à escala justa para atalhar o tédio
    Chiang Mai é uma cidadezinha de província, é verdade, mas à escala justa para atalhar o tédio Humberto Lopes
  • Os templos são uma das principais atracções tanto de Chiang Mai como de Chiang Rai
    Os templos são uma das principais atracções tanto de Chiang Mai como de Chiang Rai Humberto Lopes
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  • Rio Mekong
    Rio Mekong Humberto Lopes

Na Tailândia, seguindo os passos de Fernão Mendes Pinto

Por Humberto Lopes

Há quatrocentos anos, em 1614, era publicada em Lisboa uma das mais extraordinárias narrativas de viagem escritas em língua portuguesa. Na Peregrinação, registo de aventuras e desventuras vividas por Fernão Mendes Pinto durante os 21 anos em que andou pelo Oriente, o autor narra os “trabalhos e perigos de vida” por que passou. Numa das regiões onde viveu, “o que o vulgo naquelas partes chama Sião”, há uma cidade cuja herança histórica faz dela uma capital cultural.

Esta história começa em 1546, em Ayutthaya (ou Odiaa, como a designava Fernão Mendes Pinto). O autor daPeregrinação encontrava-se ali há mais de um mês, chegado de Sunda (ilha de Java), preparando-se para partir para o Japão, quando à capital do reino do Sião chegaram notícias de que as províncias do Norte se achavam ameaçadas pelas investidas do rei do Chiammay e seus aliados.

Apressou-se o soberano de Ayutthaya a lançar pregões de guerra, obrigando ao alistamento de todos os homens sãos, incluindo os estrangeiros que por lá estivessem. Aos portugueses, mandou o rei o recado de que “desejava muito entregar-lhes a guarda da sua pessoa, por ter conhecido deles que eram mais para isso do que todos os outros”. Dessa sorte foi que, voluntariamente ou tão-só pelas promessas e “esperanças de grandes pagas, mercês e honras”, não foram poucos os companheiros de Fernão Mendes Pinto que aceitaram o repto – “de centro e trinta portugueses que então ali estávamos, cento e vinte aceitámos ir com ele”.

Claro que há inúmeras histórias que precedem o episódio da guerra do Chiammay, nelas se entrelaçando a trajectória pessoal de Fernão Mendes Pinto e incidentes indissociáveis do processo da expansão marítima portuguesa. Há muito havia ficado para trás a fuga precipitada de Lisboa, e quando Fernão Mendes Pinto escuta, em Ayutthaya, a ordem de mobilização para a guerra do Chiammay, já tinha feito bastante caminho e vivido muitas das vicissitudes que o fizeram “treze vezes cativo e dezassete vendido”. Aventureiro, mercador, embaixador, mercenário, esmolante, marinheiro, pirata, com tais sortidos estatutos já havia dado umas quantas voltas pelas bandas do Oriente, de Ormuz a Diu, de Goa ao reino do Martavão, na Birmânia, de Malaca à ilha de Java e às Molucas, do Golfo do Sião a Liampó, na China, e a Tanixumá (a actual Tanegashima), no Japão. O envolvimento de Fernão Mendes Pinto como mercenário na guerra do Chiammay tem um valor simbólico nas relações entre Portugal e a Tailândia. Tendo sido a sua única participação numa guerra “convencional” no Oriente, foi um envolvimento num conflito que representava uma etapa no processo de unificação/ampliação do reino do Sião.

A narrativa de todas essas andanças, tal como outras histórias contadas na Peregrinação (como a da fantasiosa, dizem, embaixada ao Calaminhão) está marcada por não poucas inconsequências, cronologias confusas e exageros, mistérios que jamais serão, provavelmente, esclarecidos. Façamos fé, todavia, em Fernão Mendes Pinto e, já agora, no valor da ficção (se for o caso) como artifício útil na evocação da realidade. Façamos fé em que, neste episódio de Chiang Mai, o que é contado não é narrativa alheia, de que se fez intermediário, mas por ele foi realmente vivido.

Por este Sião acima

Atravesso o rio Mae Nam Pa Sak num barquinho que me deixa junto à estação ferroviária de Ayutthaya, a poucos minutos de chegar a ligação para Chiang Mai. Esta é uma composição muito diferente da que me trouxe de Banguecoque a esta espécie de Veneza oriental, como a viu Fernão Mendes Pinto, “porque polas mais das ruas se anda por água”. Uma semana antes as carruagens tinham bancos de madeira, grandes janelas abertas e trespassadas por um vento ardente, e havia monges budistas por toda a parte murmurando orações.

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