Esta história começa em 1546, em Ayutthaya (ou Odiaa, como a designava Fernão Mendes Pinto). O autor daPeregrinação encontrava-se ali há mais de um mês, chegado de Sunda (ilha de Java), preparando-se para partir para o Japão, quando à capital do reino do Sião chegaram notícias de que as províncias do Norte se achavam ameaçadas pelas investidas do rei do Chiammay e seus aliados.
Apressou-se o soberano de Ayutthaya a lançar pregões de guerra, obrigando ao alistamento de todos os homens sãos, incluindo os estrangeiros que por lá estivessem. Aos portugueses, mandou o rei o recado de que “desejava muito entregar-lhes a guarda da sua pessoa, por ter conhecido deles que eram mais para isso do que todos os outros”. Dessa sorte foi que, voluntariamente ou tão-só pelas promessas e “esperanças de grandes pagas, mercês e honras”, não foram poucos os companheiros de Fernão Mendes Pinto que aceitaram o repto – “de centro e trinta portugueses que então ali estávamos, cento e vinte aceitámos ir com ele”.
Claro que há inúmeras histórias que precedem o episódio da guerra do Chiammay, nelas se entrelaçando a trajectória pessoal de Fernão Mendes Pinto e incidentes indissociáveis do processo da expansão marítima portuguesa. Há muito havia ficado para trás a fuga precipitada de Lisboa, e quando Fernão Mendes Pinto escuta, em Ayutthaya, a ordem de mobilização para a guerra do Chiammay, já tinha feito bastante caminho e vivido muitas das vicissitudes que o fizeram “treze vezes cativo e dezassete vendido”. Aventureiro, mercador, embaixador, mercenário, esmolante, marinheiro, pirata, com tais sortidos estatutos já havia dado umas quantas voltas pelas bandas do Oriente, de Ormuz a Diu, de Goa ao reino do Martavão, na Birmânia, de Malaca à ilha de Java e às Molucas, do Golfo do Sião a Liampó, na China, e a Tanixumá (a actual Tanegashima), no Japão. O envolvimento de Fernão Mendes Pinto como mercenário na guerra do Chiammay tem um valor simbólico nas relações entre Portugal e a Tailândia. Tendo sido a sua única participação numa guerra “convencional” no Oriente, foi um envolvimento num conflito que representava uma etapa no processo de unificação/ampliação do reino do Sião.
A narrativa de todas essas andanças, tal como outras histórias contadas na Peregrinação (como a da fantasiosa, dizem, embaixada ao Calaminhão) está marcada por não poucas inconsequências, cronologias confusas e exageros, mistérios que jamais serão, provavelmente, esclarecidos. Façamos fé, todavia, em Fernão Mendes Pinto e, já agora, no valor da ficção (se for o caso) como artifício útil na evocação da realidade. Façamos fé em que, neste episódio de Chiang Mai, o que é contado não é narrativa alheia, de que se fez intermediário, mas por ele foi realmente vivido.
Por este Sião acima
Atravesso o rio Mae Nam Pa Sak num barquinho que me deixa junto à estação ferroviária de Ayutthaya, a poucos minutos de chegar a ligação para Chiang Mai. Esta é uma composição muito diferente da que me trouxe de Banguecoque a esta espécie de Veneza oriental, como a viu Fernão Mendes Pinto, “porque polas mais das ruas se anda por água”. Uma semana antes as carruagens tinham bancos de madeira, grandes janelas abertas e trespassadas por um vento ardente, e havia monges budistas por toda a parte murmurando orações.