A imagem é a de um homem a pedalar junto ao rio. Não há neve. Em vez dela, há tons de rosa ou vermelho das flores, dependendo se é Primavera ou Outono. O rio quase sem neblina, as árvores a dar a ilusão de mata cerrada, não fosse o permanente rodar dos carros numa dormência mecânica imparável. Na imagem, agora o pedalar percorre uma recta a subir ou descer Riverside Park. Meia hora a subir e outra a descer os mais de seis quilómetros que separam a rua 72 da 158, junto ao rio Hudson. Seria assim, alguém a pedalar numa bicicleta, não fosse o branco e o preto a desmentir quem diz que nada é a preto e branco, e o simples andar de bicicleta transformar-se numa experiência impossível.
Naquela tarde em Upper West Side, junto ao rio, é mesmo quase tudo branco. Só umas pinceladas de preto e cinzento dos ramos das árvores a desmontar a ideia de um denso bosque. Nem uma folha. E a neblina a tirar a cor ao Hudson sem deixar ver como anda a outra margem. Tudo a perto e branco, excepto os cinzentos e depois quase todas as cores nos gorros dos que não temeram a tempestade e deslizam em trenós mais ou menos improvisados.
É sábado de um Janeiro gelado. As temperaturas negativas andam a bater recordes — quem pode, hiberna. O que vemos, afinal, é um homem num café com neve em fundo, uma chávena na mesa e as mãos a acompanhar um discurso sobre o que é alguém poder sentir-se de vários sítios. “Cresci no Porto, vivi em Lisboa, passei por Milão, estive três anos em Inglaterra, agora estou aqui. Não posso dizer que sou de nenhuma dessas cidades, mas quando saio de uma delas sinto que não volto o mesmo”, diz Pedro Gadanho, português, há dois anos a viver em Nova Iorque como curador de arquitectura contemporânea no Museu de Arte Contemporânea de Nova Iorque (MoMA), como se houvesse uma apropriação quando se está num lugar mais do que na circunstância de turista ou viajante. É preciso haver algo de sedentário nessa condição nómada.
É hora do lanche. A paragem é famosa, mas está a salvo de roteiros turísticos, apesar de os media do mundo não a ignorarem. Na sinalética dos espaços, o Café Lalo aparece como um lugar de sobremesas (29 receitas de cheese cake) e um cappucino capaz de desafiar a concorrência mais exigente. Onde se vai para ver e ser visto ou apenas ser mais um anónimo entre novaiorquinos de todas as idades. Tudo isso é redutor. Há quem leia, quem escreva, os que bebem café, mas sobretudo os que conversam com a tal sobremesa à frente. É um café para quem gosta de cafés, que começou a ganhar identidade com os clientes que ali paravam antes e depois dos espectáculos, dos cinemas. Ganhou culto. Cruzavam-se artistas e espectadores. “Nunca aqui estive”, diz Pedro Gadanho, antes de entrar, em frente da fachada iluminada de uma town-house como tantas naquele bairro, mesmo na rua onde mora. Naquela tarde de 14 graus negativos, parece o abrigo perfeito.
No interior, o ruído assemelha-se ao de um café latino. Fala-se alto e o Inverno vê-se das janelas, vidros altos, decoração de madeira a lembrar a Europa; Paris em Nova Iorque em cenário de filme. É cinematográfico. Norah Ephron, por exemplo, não resistiu ao charme do Lalo e sentou Meg Ryan e Tom Hanks numa das mesas de mármore, no filme You’ve Got Mail, de 1998. “O cinema parece estar sempre a dar-me sinais nesta cidade”, sorri. Fala de Woody Allen, claro, com paragens obrigatórias no Lincoln Center, umas ruas abaixo, a apontar agora para Manhattan, o filme de 1979, ou o Museu de História Natural, numa das fronteiras do Central Park.