Fugas - Viagens

  • Agostinho Gonçalves, 76 anos, da aldeia de Malhapão de Baixo, é um bom contador das histórias que fazem as paisagens agrestes da serra do Caramulo
    Agostinho Gonçalves, 76 anos, da aldeia de Malhapão de Baixo, é um bom contador das histórias que fazem as paisagens agrestes da serra do Caramulo Renato Cruz Santos
  • Caramulo
    Caramulo Renato Cruz Santos
  • Os antigos sanatórios são agora repositórios de memórias dos tempos em que o Caramulo era uma estância vanguardista
    Os antigos sanatórios são agora repositórios de memórias dos tempos em que o Caramulo era uma estância vanguardista Renato Cruz Santos
  • Renato Cruz Santos
  • Renato Cruz Santos
  • Museu do Caramulo
    Museu do Caramulo

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Caramulo, a montanha mágica

A inspiração veio da Suíça, paradigma dos complexos de sanatórios na Europa e que serviu de inspiração a escritores como Thomas Mann e Hermann Hesse. Jerónimo Lacerda chegou ao preciosismo de mandar reflorestar a serra com espécies daí trazidas. Pouco helvética era a arquitectura, onde os ventos Art Déco se adaptaram às noções de tratamento da tuberculose (e aos princípios do Estado Novo) e resultaram em edifícios robustos, linhas rectas em três ou quatro pisos com galerias viradas a nascente: aí, os pacientes passavam largos períodos deitados, de manhã e à tarde, em silêncio absoluto — muitas fotografias atestam o cenário.

Não só na arquitectura se reflecte a influência do Estado Novo no (fabuloso) destino do Caramulo. Bem conhecida é a amizade entre o seu fundador e Salazar, que era natural da região. A relação entre ambos permitiu o crescimento do Caramulo e o ditador era visita assídua. Mas nem esta amizade salvou a Estância Sanatorial que a evolução da medicina tornou obsoleta. A cura da tuberculose seria a doença do Caramulo.

Mais uma vez se olhou o futuro e o que se viu foi o turismo. Construiu-se um museu de arte, que ganhou fama pelos carros, chegados posteriormente. Quando os sanatórios fecharam, restou então o museu. E duas dezenas de edifícios, muitos deles de dimensões enormes; e estalagens, pensões; e chalets; e cafés, restaurantes. Entre uma floresta povoada de árvores raras, cedros em abundância, pinheiros de geometria simétrica, numa serra pedregosa que um mar de chamas invadiu deixando para trás porções de esqueletos negros sobre terra queimada.


O turismo como futuro

Chegamos então ao Caramulo e o nosso caminho é, talvez surpreendentemente, verde. Ainda mais verde molhado pela chuva (quase) ininterrupta. A vila começa a desdobrar-se em encosta, suportada por muros de pedra, com edifícios a misturarem-se com esse verde, em momentos disciplinado por pequenos parques. Há uma elegância desbotada enquanto percorremos as ruas largas de paralelepípedos que desenham curvas na montanha: no centro, uns poucos cafés e restaurantes, mas o que sobressai é a quantidade de edifícios entaipados ou em abandono.

O mais imponente é o do Grande Sanatório, um gigante decadente que um cadeado separa do mundo (o núcleo do Sporting é a única porta que se abre), com árvores estilo bonsai XL desfolhadas a emprestar um ar fantasmagórico contra um horizonte encerrado na névoa. Conhecer-lhe as entranhas (salas, saletas, quartos, azulejos em abundância, algum resto de mobiliário e papéis) apenas quando há eventos — na sala de convívio, a ACERT (de Tondela) fez recentemente uma exposição sobre os sanatórios e na sala de cinema, nas traseiras, foi apresentado o documentário Na Sombra da Encosta, de alunos da UTAD sobre a estância.

Muitos dos sanatórios são apenas carapaças para perigos iminentes. A entrada neles não é recomendável, mesmo quando não está interdita pelos proprietários. No sanatório infantil, há menos de duas décadas ainda havia catequese e aulas de música, conta-nos quem por lá passou. Por estes dias, tem baloiços corroídos pela ferrugem, portas abertas para uma ratoeira de chão carcomido. Dois antigos sanatórios transformaram-se em prédios de habitação, uns poucos mais em lares; os restantes estão abandonados e dois foram mesmo demolidos pelo risco de desabamento — às vezes, passado e presente sobrepõem-se em relação triangular, se tivermos a sorte de ter um “guia” local: junto a um abandonado, vemos as traseiras de um reconvertido e o terreno agora verde de ervas onde outro existiu.

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