Fugas - Viagens

  • Agostinho Gonçalves, 76 anos, da aldeia de Malhapão de Baixo, é um bom contador das histórias que fazem as paisagens agrestes da serra do Caramulo
    Agostinho Gonçalves, 76 anos, da aldeia de Malhapão de Baixo, é um bom contador das histórias que fazem as paisagens agrestes da serra do Caramulo Renato Cruz Santos
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    Caramulo Renato Cruz Santos
  • Os antigos sanatórios são agora repositórios de memórias dos tempos em que o Caramulo era uma estância vanguardista
    Os antigos sanatórios são agora repositórios de memórias dos tempos em que o Caramulo era uma estância vanguardista Renato Cruz Santos
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  • Museu do Caramulo
    Museu do Caramulo

Caramulo, a montanha mágica

Por Andreia Marques Pereira

Ninguém podia imaginar o fabuloso destino do Caramulo. Num canto esquecido do país profundo do início do século XX, nasceu um projecto vanguardista que se tornaria numa das mais importantes estâncias sanatoriais da Europa. Aqui vivia-se dos “bons ares”. Estes continuam, à espera de quem queira repousar ou encher-se de adrenalina pelos caminhos da serra.

É duro viver na Serra do Caramulo. E não o é apenas pelo tempo. Se tivéssemos chegado uma semana mais cedo, tínhamos encontrado neve; como chegámos uma semana depois, somos recebidos por chuva, vento e névoa. Melhora ao segundo dia.

- Vim mais cedo porque o tempo vai virar.

Com a capucha negra pela cabeça, Agostinho Gonçalves, 76 anos rijos, é primeiro (e depois) um ponto imóvel na encosta verde bordada por linhas de granito. O vale está no fundo, os montes multiplicam-se para além. Nas suas proximidades, quatro vacas pastam, a Branca, a Moucha, a Preta e a Mulata. Passa do meio-dia, vai ficar mais duas horas.

- Costumo vir à tarde.

Mas o tempo vai virar, diz então. Receamos pelo passeio de descoberta destas paisagens agrestes, onde as aldeias se sucedem, com a sua capelinha e santo, povoando as vertentes da serra com manchas de granito, xistos e telhas vermelhas musgosas. Sempre com intromissão de umas poucas casas pintadas. Estamos em Malhapão de Cima, Agostinho é de Malhapão de Baixo — aponta o pequeno aglomerado, um pouco abaixo. Tivéssemos nós, e ele, tempo, iríamos lá, a sua casa, para “um copinho de vinho, pão e mel.”

Assim, ficamos expostos ao frio a ouvir como os carros não chegavam aqui nos anos de 1980. Como o pai teve de carregar, colina acima, um irmão, perna partida, numa padiola até ao Picoto. Como os filhos caminhavam até à escola. Agora os filhos estão espalhados, Angola, Suíça.

- Um está comigo, a minha filha vive aqui noutra casa, outro está em Viseu.

E ele já esteve na Suíça, França, Alemanha, Moçambique. Também almoçou com Ramalho Eanes, na Pousada do Caramulo, “já fechada”. Foi presidente da junta por três mandatos e meio. Não seguidos.

- Convidaram-me para encabeçar a lista. Eu estava farto de ver outras aldeias terem o que nós não tínhamos.

Então chegou a estrada. Agora, as crianças vão para a escola numa carrinha. São cada vez menos.

Foi neste território que em 1920 um médico de Tondela, carreira assegurada na Universidade de Coimbra, começou a construir uma espécie de utopia. A serra do Caramulo já era conhecida pelos seus “bons ares”; a tuberculose era a “peste branca”. Jerónimo Lacerda reuniu um grupo de investidores e em 1922 inaugurava-se o Grande Hotel, para convalescentes. Em 1925 dá-se a mudança-chave — o hotel passa a sanatório, recebendo doentes. Nos anos seguintes, este canto da freguesia de Paredes de Guardão, antes coberto de campos, viu crescer uma vila que foi um dos complexos sanatoriais mais vanguardistas da Europa.

A Estância Sanatorial do Caramulo chegou a ter 19 sanatórios (o número varia conforme se contabilizem ou não algumas pensões), servida por saneamento básico, rede eléctrica autónoma, lavandaria com esterilização, rede de frio, sala de cinema, estação de rádio, estação de correio, a primeira rede automática de telefones do país, central de vapor para aquecimento… Construiu-se um novo cemitério, que seria só para “os de fora”; os cafés e restaurantes tinham louça separada para os doentes. Casas e chalets começaram a preencher a serra, para receber o pessoal médico e alguns familiares de doentes que queriam (e podiam) acompanhar os tratamentos. Anos, às vezes.

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