Fugas - Viagens

  • Agostinho Gonçalves, 76 anos, da aldeia de Malhapão de Baixo, é um bom contador das histórias que fazem as paisagens agrestes da serra do Caramulo
    Agostinho Gonçalves, 76 anos, da aldeia de Malhapão de Baixo, é um bom contador das histórias que fazem as paisagens agrestes da serra do Caramulo Renato Cruz Santos
  • Caramulo
    Caramulo Renato Cruz Santos
  • Os antigos sanatórios são agora repositórios de memórias dos tempos em que o Caramulo era uma estância vanguardista
    Os antigos sanatórios são agora repositórios de memórias dos tempos em que o Caramulo era uma estância vanguardista Renato Cruz Santos
  • Renato Cruz Santos
  • Renato Cruz Santos
  • Museu do Caramulo
    Museu do Caramulo

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Caramulo, a montanha mágica

O turismo como futuro do Caramulo, pensado pela família “fundadora”, tem a sua âncora no museu, fundado na década de 1950, uma consequência da já previsível decadência da estância (desactivada nos anos de 1970): fachada imponente, traços indelevelmente Estado Novo, em colunas austeras e traço geométrico, no edifício principal. O busto do fundador do museu, Abel Lacerda (filho de Jerónimo Lacerda), recebe os visitantes com a informação: todos os objectos aqui foram doados e o nome dos doadores acompanha a descrição das peças.

É no primeiro andar que começa a visita numa sala que parece de arte sacra (impõem-se as esculturas românicas) mas afinal congrega artefactos egípcios, romanos, persas, sírios, chineses. As tapeçarias das salas seguintes, quatro, são umas das jóias do museu — quinhentistas, encomendadas por D. Manuel I para comemorar a descoberta do caminho marítimo para a Índia com as idiossincrasias da época: as cores ainda brilham e revelam camelos com pescoços de girafas, macacos com olhos azuis, jubas e mãos humanas, por exemplo (mais à frente veremos porcelana chinesa em que Cristo tem olhos rasgados). Entre contadores e escrivaninha com escudo de D. Sebastião, um pequeno S. Bernardo de Siena, de Quinten Metsijs (oferta de Salazar), revela um realismo atroz nas mãos envelhecidas, passamos por Maria de Medicis e Luís XIV, mas os nomes mais atraentes são, porventura, os que nos esperam nas últimas salas. Picasso e Dalí doaram quadros e também se representam em cerâmica, há obras de Léger e Luçart, desenhos de Miró e Chagall. Nos portugueses, Amadeo de Souza Cardoso, Columbano Bordalo Pinheiro, Silva Porto, Aurélia de Sousa, um cantinho Vieira da Silva — antes víramos um Grão Vasco, por exemplo.

Voltamos ao rés-do-chão para nos iniciarmos nas lides automobilísticas desde os seus primórdios, quando os carros eram uma espécie de híbrido de coches. O mais antigo carro em funcionamento em Portugal, um Peugeot de 1899, é um dos primeiros que vemos da colecção iniciada por João Lacerda (outro dos filhos de Jerónimo), com um Ford T de 1925. Em exibição estão cerca de 80 viaturas, incluindo raridades e peças únicas; carros históricos, como os que pertenceram a Salazar ou os que transportaram personalidades como a rainha Isabel II ou o general Eisenhower; curiosidades como um carro com pneus de borracha maciça; estrelas mediáticas como o Lamborghini ou o Ferrari F40. Numa visita guiada, conhecem-se os bastidores de cada carro, “estórias” incluídas, num percurso por exemplares mais ou menos sonantes (e vistosos) para leigos — o espanhol Pegaso, nosso desconhecido, foi um dos que ficou na retina. O museu faz ponto de honra ter todos os carros a funcionar e a passear regularmente, seja em simples manutenção ou participação em eventos. Uma nota para a sala mais inesperada do museu, a da coleção de brinquedos que é uma das mais memoráveis para os visitantes, dizem-nos — um século deles, três mil peças, exibem-se em vitrinas carregadas.


A serra e o mar

Estamos na vertente sul da serra do Caramulo, a 800 metros de altitude, debruçando-nos sobre o Vale de Besteiros e acenando à serra da Estrela, quando ela se deixa ver. Ouvimos várias descrições do mar de nuvens que se costuma instalar — com sorte, estamos acima delas, sol a brilhar e a Estrela ao longe. No Cabeço da Neve fazemos uma primeira tentativa pouco convicta de observar o cenário. Não há nuvens, não há sol, mas as névoas dão tréguas e vemos o mosaico de verde e povoações lá no fundo. Menos sorte no Caramulinho, o ponto mais alto da serra (1076 metros), onde nos esperam brumas cerradas e frio quase glacial — em condições ideais, o horizonte é panorâmico: da serra da Estrela ao mar em Aveiro. De carro passamos aldeias e campos de pedras que nascem entre o verde em composições caprichosas: equilibram-se miraculosamente umas nas outras, compõem imagens bizarras — a mais famosa a “cara do Snoopy”, à beira da estrada. Aqui e além, o negro, insidioso, impõe-se com restos de troncos — desolação amenizada pelo verde que teima em não sair da vista.

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