À chegada
Não esperamos uma primeira reacção tão veemente.
- What the fuck am I doing here?
“Here”, aqui, é o Porto, claro, e é Alexandru Chirita quem o diz, ainda mal refeito do susto que apanhou ao chegar à cidade, sexta-feira de manhã, 14 de Fvereiro, um dia depois de o Porto ter sido eleito destino europeu do ano. O avião não aterrou à primeira tentativa: os ventos fortes obrigaram a abortar a aproximação à pista e a voar durante algum tempo pelos céus do Porto. À segunda tentativa, silêncio sepulcral no avião, conta, aterraram. Para saírem para chuva intensa. Tudo junto faz Alex, como é conhecido, interrogar-se por que trocou a soalheira Barcelona, onde vive há quatro anos desde que deixou a Bucareste natal, para passar um fim-de-semana no Porto.
Claro que são perguntas de retórica, carregadas de ironia. Depois do pânico, “contido”, sublinha, e da frustração climatérica, rapidamente Alex alinha no espírito que vai marcar o fim-de-semana. Está no Porto para um encontro de amigos — ele tem 28 anos e é o mais novo; os outros já entraram nos 30. No mesmo avião, veio uma amiga, Ligia Molina, hondurenha a viver em Espanha há mais de uma década; no aeroporto Sá Carneiro já os esperava Marcela Montenegro, brasileira chegada de Madrid manhã cedo. À noite chegariam mais duas amigas, Amparo Díaz, mexicana a viver em Madrid, e Elena Delgado ,vinda de Sevilha via Faro. Pelo meio, encontro com amigos portuenses para um fim-de-semana onde o espanhol, o inglês, o “portunhol” e o “spanglish” seriam línguas francas.
A chuva e ventos fortes dessa manhã — desse dia, como se veria — não assustam Ligia e Marcela, visitantes (mais ou menos) assíduas do Porto desde há dez anos. A primeira vinda foi à boleia de uma amizade ganha em Salamanca, onde ambas se conheceram quando faziam mestrados — esse amigo até está emigrado no outro lado do mundo, mas pelo caminho fizeram outros amigos. E vão regressando com outros. Como neste fim-de-semana. Para Alex e Elena é a primeira vez na cidade; Amparo esteve há dois anos, um dia e meio, em viagem de família.
Durante a estada
O que é que o Porto tem para que queiram voltar? Tivemos um fim-de-semana para o descobrir, entre chuva, céu nublado e sol, - Tivemos Inverno e Primavera, resume Alex no regresso ao aeroporto. Tivemos passeios diurnos e incursões noctívagas. Mas tudo começa na sexta-feira com as “veteranas” do Porto, Ligia e Marcela, a darem o primeiro passo. Praia dos Ingleses, sentenciam, ignorando a inclemência do clima. Alex deixa-se guiar. - Só conheço o vinho do Porto e sei que é bonito porque já vi fotografias de amigos.
Por enquanto, vê a Anémona de Matosinhos. “Vimo-la a primeira vez que viemos, é muito engraçada”, dizem Ligia e Marcela. O mar revolto hipnotiza-os, mas não chegarão a vêlo frente a frente. O minitemporal montado na primeira linha do mar não os deixa chegar à esplanada na praia. Nova decisão, que soa como uma espécie de rendição feliz. “Vamos para o centro.”
O centro, vemos, é a zona da Baixa- Clérigos. Velha conhecida das incursões nocturnas, depois dos primeiros anos marcados por “casas antigas e apartamentos”. Sabem que não há falta de restaurantes e bares. Os autocarros turísticos, uns amarelos, outros vermelhos, vão passando quase vazios. O Porto está abrigado e pela chuva alteram-se os planos.
Ao almoço, segue-se o check-in. Um apartamento ao lado do Mercado Ferreira Borges, num edifício onde Marcela e Ligia já ficaram.
- Fiz a reserva pela Internet e procurei estes apartamentos. São fantásticos,
justifica Ligia. E baratos, acrescenta. Será um dos temas do fim-de-semana. Ninguém quer acreditar que pagaram apenas 44 euros cada um por duas noites num apartamento duplex, com três quartos duplos. Mais um sofá-cama na sala. E três terraços. E três casas-de-banho completos. A decoração é cuidada, impecavelmente retro; a pedra exposta quando possível. A vista, impagável. As duas torres da Sé, o palácio episcopal, a Igreja dos Grilos, por detrás o mosteiro da serra do Pilar e uma escadaria de telhados pelo meio.
“Devíamos aproveitar o apartamento”, a chuva não dá tréguas. Um minimercado nas redondezas é o ponto de abastecimento e o resto da tarde é caseiro. Não é fácil sair, mas amigos portugueses esperam-nos e o Candelabro é já um mito. Até ao final do jantar, ali nas redondezas no Le Chien Qui Fume (Rua do Almada), o grupo reúne-se na totalidade.
- Salud.
A noite prolonga-se. Ligia insiste em levar o grupo a uma das suas últimas descobertas portuenses. “Os va a flipar.” O Era uma vez em Paris é o início; o Tendinha dos Clérigos o final. O primeiro dia foi de encontros. O sábado será todo do Porto. Sem mapas, apenas com as memórias de Ligia e Marcela que passam as suas experiências aos amigos.
Não é um dia esplendoroso, mas tão-pouco chove. O rio Douro corre escuro, lamacento, excessivo. Do apartamento alugado à Ribeira são algumas centenas de metros, de olhos postos nos edifícios.
- Porque há tantos edifícios abandonados?,
a pergunta há-de repetir-se. De uns e de outros. As respostas também. “Os proprietários não têm dinheiro para recuperá-los”; “o país está em crise”. Ninguém está alheio às dificuldades económicas do país. Mas na Ribeira, nesta manhã, não vêem crise no meio da multidão que por aqui circula.
- Em Madrid, em Espanha, também vês decadência e tristeza nas gentes. Aqui também estão tramados, mas vê-se outro sentimento. Nem tudo são más notícias,
reflecte Amparo.
Na Praça da Ribeira, a estátua do São João de Cutileiro suscita admiração e elogios; a vista ainda mais. Há quem veja os barcos, e são tantos agora, e proponha fazer um passeio pelo rio, “pelas pontes”. “São quantas?” Alguém fala de Eiffel e aponta a ponte Luiz I. O equívoco é desfeito — “é uma de comboios mais para lá”, dedo apontado para nascente.
Ganha o passeio a pé até Gaia, até às caves do vinho do Porto, cujos nomes se divertem a descortinar na encosta. “Porque têm todos nomes ingleses?” É Ligia quem explica o que já ouviu outras vezes: “Porque foram eles que dominaram o comércio do vinho do Porto. Havia uma grande comunidade no Porto.” E se acham que a vista agora é bonita, à noite é-o muito mais, acrescenta.
O colorido das casas impressiona, as roupas nos estendais evocam fotografias vistas, as bancas de atoalhados e artesanato merecem miradas, apenas. A violinista que toca A canção do mar não suscita qualquer reconhecimento, apenas memórias de um outro dia na Ribeira com música brasileira. As fotografias vão-se sucedendo, em grupo, do cenário — o Facebook dos cinco será constantemente actualizado, do Porto com amor.
O tabuleiro inferior da ponte Luiz I é atravessado com maldições aos carros que passam e à estreiteza dos passeios onde se cruzam com outros turistas, máquinas fotográficas em punho. A encosta da Ribeira começa a desvendar-se e é para aí que os olhares se voltam — e para o rio que se perde em curva adornada pelo casario. Na margem de Gaia,
- Já não estamos no Porto,
alerta Ligia,
é o Porto que primeiro se mira.
- Gosto de cores e misturas e todos os edifícios são tão perfeitamente imperfeitos,
diz Amparo, olhar perdido nos telhados indisciplinados, fachadas que são puzzles, estreitas, largas, coloridas de pedra. “Que torre é aquela?”, aponta para os Clérigos onde o vale parece encontrar o seu zénite.
À beira-rio são os barcos-rabelo que prendem a atenção, não os grandes hotéis fl utuantes. “Estes transportavam o vinho, não era?”
— “Agora são só para turista ver.” A caminhada não se detém à porta das caves, o teleférico suscita apenas curiosidade. A fome fala mais alto e o regresso ao lado do Porto tem um objectivo bem definido. Comer uma das famosas francesinhas, que Marcela esteve a “vender” aos amigos; Ligia prefere um chouriço assado — “que aqui trazem para a mesa para cozinharmos”. Os finos são já uma unanimidade e Super Bock a marca reconhecível.
A tarde prepara-se numa mesa da Ribeira, aquecedor ligado. “Há um mercadinho de rua no centro”; “e podemos ir à livraria Lello”; “e aquela loja?...”. Ligia e Marcela lançam os dados. O caminho feito é o mais longo — subida até à Estação de São Bento, azulejos portugueses à mistura.
- Azuis e brancos, têm-nos por todo o lado, não repararam?,
é Ligia a mais entusiástica. Há-de apontá-los nas fachadas de várias igrejas. Na Praça da Liberdade, aos pés dos Aliados, mais memórias. Amparo recorda que ficou alojada aqui perto, “atravessava sempre esta ‘praça’”; Marcela e Ligia lembram um concerto de um edifício para a rua, “a bateria numa varanda, o guitarrista noutra…”, e uma dança desenfreada ao som de um “punk moderno”. As reminiscências levam Marcela mais longe,
- O Porto tem as melhores coisas de uma cidade grande numa cidade pequena. É uma cidade de contrastes. De dia é tradicional, com todas as características culturais de Portugal, restos do passado; à noite é cosmopolita, moderna, com os bares e restaurantes como se estivéssemos em Londres.
Não é a primeira nem será a última referência inglesa. Na livraria Lello — “a mais bonita do mundo”, Ligia é o guia turístico —, o espanto com a quantidade de gente que enche o espaço — “não dá sequer para apreciar. Como é que alguém consegue fazer compras?” — e identificação de uma “atmosfera britânica”. A mesma que vêem nas cabinas telefónicas. Muitas fotos e publicações no Facebook — “Não estou em Londres”, escreve Elena.
A Torre dos Clérigos e o Centro Português de Fotografia merecem olhares apreciativos, e o novo Passeio dos Clérigos admiração, não tanto pelas lojas como pelo jardim, relvado e povoado de oliveiras que lhe serve de cobertura, “no contraste com os edifícios em volta”, nota Elena.
O Mercadinho dos Clérigos que esperavam encontrar na Rua Cândido dos Reis afinal não está — saberão mais tarde que nesse dia foi transferido para o interior do Plano B — mas as lojas (e os bares) que se sucedem deixam marca indelével.
Elena: Têm muito encanto, estás numa loja num edifício histórico.
Amparo: E cuidam muito os detalhes. Gosto de que entre coisas tão tradicionais haja sítios tão cool. É como o nosso apartamento, tão vintage. Agora vejo que é normal, a cidade tem esse mesmo tom.
Marcela: Em cada porta há um mundo novo. Entramos do passado para o futuro. Por isso amo o Porto.
Contudo é nos detalhes do casario que se fixam.
Amparo: A cidade tem um encanto que não vi em nenhum lado do mundo. Também não conheço muito… Mas é algo… Está a cair, mas é impressionante, como se fosse um conto de fadas. A arquitectura é bestial.
Elena: Vê-se que foi uma cidade rica e agora está em decadência…
Ligia: Por isso é tão entrañable.
E mais se fixarão no domingo no grande pátio-miradouro da Sé, com a “magia” do pôr do sol de um lado e as “torres de igrejas” que emergem quando se olha para o Norte. Parte do grupo já se terá ido embora — Alex e Marcela —, o resto enfrenta o frio cortante de fim de tarde e ainda dá uns passos de dança ao som do guitarrista- cantor num canto do Palácio Episcopal, bem acima do rio. Se Alex ainda estivesse, reforçaria a sensação de quando caminhava à beira-rio,
- O sol a cair, as esplanadas, os músicos na rua, é um ambiente romântico.
Contudo, a Sé será quase a despedida dos passeios portuenses. E no sábado à noite há um jantar a degustar. Inesperadamente, será à porta de “casa”. É uma novidade na Rua de Souza Viterbo, colada às traseiras do Mercado Ferreira Borges — que merecerá uma visita mais tarde, para terminar a noite no Hard Club. - Abriu para nós, este Jesse Sushi & Restaurante que teve inauguração uma noite antes. Mais uma vez é o espaço que atrai, visto de fora – “Porque não?” – e por dentro. Se o sábado foi dia nublado, domingo chega com um sol esplendoroso.
O caminho a tomar é o da Foz. Amparo recorda o caminho que fez no eléctrico e quando vê o farol vermelho e branco,
- Fiquei com esta imagem sempre gravada na memória.
Agora também a pérgula está eternizada em fotos, com o mar cinzento a revoltear-se por detrás. E está a esplanada da Praia dos Ingleses, onde se queimam horas deste domingo ao sol com o pouco areal em volta coberto de detritos marítimos.
A Boavista, a Casa da Música, o Museu de Serralves… “É bonito, mas prefiro a parte velha”, declara Amparo, desfeita a ideia de que “o Porto não tem um casco antigo, é todo antigo”.
Marcela: Acho que a maior parte das pessoas fica na parte mais tradicional. Os turistas vêm aqui e não esperam Europa…
Amparo: … mas esta é a ideia de Europa…
Elena: … velho, bonito, decadente, moderno…
Na partida
Ninguém sabia do prémio de melhor destino europeu de 2014 ganho no dia anterior à chegada ao Porto. Alex espera regressar com mais tempo,
- Um fim-de-semana não chega para conhecer o Porto.
Elena já publicou teasers no Facebook, “para voltar com outros amigos”. Ligia está praticamente em casa. Marcela vê a cidade como uma síntese, “oferece as melhores coisas de uma cidade grande numa cidade pequena”. Amparo via-se perfeitamente a viver aqui — “me mola”.
- Não é uma cidade normal. Tem algo que se sente… E é amável com o turismo.
Tivesse Joana Dixo, co-proprietária do novíssimo restaurante Jesse, ouvido e a correcção viria. “O Porto é do turismo”, disse-nos sábado à noite no seu espaço que, a meio caminho entre o centro e a Ribeira, está “na passarela turística” da cidade. Há cinco anos a trabalhar em turismo, com vários negócios, não tem dúvidas de que as low-cost foram a melhor coisa que aconteceu na cidade nos últimos tempos. Porém, por estes dias, vê uma mudança,
- Antes os turistas vinham pelas low-cost, agora vêm porque um amigo veio, gostou e recomendou. O turismo é o futuro do Porto.
Se é ou não, não sabemos. Sabemos que, na hora do adeus, os cinco amigos combinam novo encontro, sem data marcada — no Porto.