O antigo Cabo Juby espanhol ocupa um breve lugar nas páginas da expansão marítima portuguesa. Talvez tenha sido essa a localização do temido Cabo Não, o mesmo que inspirou aos navegadores lusitanos o aforismo "Aquele que ultrapassar o Cabo Não / Ou voltará ou não”. Esse mistério é, ainda, um quebra-cabeças para os historiadores.
Na primeira metade do século XX, o território era administrado por Madrid, havia por lá um bairro e um forte espanhóis, a ruína de um entreposto inglês corroído pelas marés atlânticas, a Casa Mar, e já então, como hoje, areias a ameaçarem submergir o povoado. Cap Juby, a actual Tarfaya, tornou-se, nos anos 1920, uma escala estratégica dos voos entre Toulouse e Dacar, no Senegal. Saint-Exupéry foi aí chefe de escala durante um par de anos, aí aprendeu, também, a amar o deserto e, como conta numa carta, em Cap Juby se entregou ao sereno júbilo de viver com o elementar, com quase nada, um catre, uma janela, o vento e o céu azul trespassado por nuvens de areia em viagem para o interior. Ali escreveu o seu primeiro romance, Courrier Sud, e ali terá encontrado inspiração para os cenários de O Principezinho.
Num café bem popular de Tarfaya, Ahmed, um ex-emigrante que regressou da Europa há dois anos, saturado de trabalho precário, e magoado por uma agressão xenófoba, fala-me de Saint-Exupéry como de um filho da terra, do modesto, mas tocante, museu que Tarfaya lhe dedicou e que recebe, apesar da localização remota da cidade, mais de um milhar de visitantes por ano. Almoçamos uma espécie de caldeirada de polvo no restaurante do Hotel Tarfaya, diante das dunas e com uma nesga de mar ao fundo. O porto de pesca fica perto, a região é riquíssima em recursos piscícolas, mas para a cidade sair da modorra e embarcar num "desenvolvimento sustentável" (o mantra da moda lá está, também, em luzidios painéis nas ruas), a Association Les Amis de Tarfaya, a que Ahmed pertence, reclama que seja retomada a ligação por ferry com a ilha de Fuerteventura, interrompida após o naufrágio do Assalama.
O meu inesperado anfitrião acompanha-me depois ao museu e às dunas marítimas, um pouco mais para norte, onde um modelo do avião utilizado por Saint-Exupéry (um Bréguet 14, um biplano do tempo da I Grande Guerra) empinado sobre um pedestal lembra a passagem do piloto-escritor por Tarfaya. No regresso ao povoado, vêem-se por todo o lado as areias, batidas pelo vento, a assediarem muros e ruas e a fustigarem o velho bairro espanhol, onde se situa o museu, como que a recordar o irrisório e a efemeridade do gesto humano. “O deserto é que é essencial, o humano e as sociedades são fruto do acaso”, escreveu Saint-Exupéry, desaparecido durante uma missão de reconhecimento no Mediterrâneo, como piloto de guerra, há exactamente setenta anos.
Nada para fazer
Guelmin é uma cidade de arquitectura invariável, “monótona”. Uma escultura imensa em tons rosáceos, com linhas em branco relevo nas fachadas de alguns edifícios, porventura evocação das linhas Art Deco que pontuam a mestiça paisagem arquitectónica da vizinha Sidi Ifni. Leio num guia de viagem um desdém: Guelmin, centro administrativo de província, desmerece qualquer atenção, seja pela condição de encruzilhada, seja pelo epíteto, um tanto fátuo, é certo, de “Porta do Sara”, que a autarquia tenta promover, a par de um “mercado nómada” semanal que de há uns tempos para cá começou a atrair algum turismo.