Ser ou não ser
De pé, atrás de um balcão, uma senhora de meia-idade não tem mãos a medir para atender dezenas de crianças que compram pequenas recordações que, em comum, têm o aproveitamento da imagem do homem que é um dos mais citados em todo o mundo. Tudo o que diz respeito a William Shakespeare, desde um simples lápis a um inestético boné, faz parte, afinal, daquela que é muito provavelmente uma das mais poderosas máquinas de marketing da nação.
- É sempre assim por altura da Páscoa.
Num tempo de crise, também em Inglaterra, tenho dificuldade em perceber um desabafo que deveria ser substituído por um sentimento de gratidão.
- Sou empregada!
Um pouco por todo o lado, mais agora que se celebram os 450 anos sobre o nascimento de William Shakespeare, os turistas enchem as ruas desta cidade com uma população residente que ultrapassa em muito pouco os 20 mil habitantes, entre eles Janet Righton, com quem partilho por alguns minutos um banco debruçado sobre o Avon.
- Muitos deles não apreciam a obra de Shakespeare, outros têm um conhecimento pouco aprofundado sobre a sua vida e apenas uma escassa minoria se sente verdadeiramente identificada com a sua produção literária. Salvo as devidas distâncias, é um pouco como visitar Graceland, nos Estados Unidos, faz-se por voyeurismo, não por se gostar ou ser fã de Elvis Presley.
Olhando à minha volta, analiso e reflicto sobre atitudes e meço esta analogia nada descabida; sinto-me agora mais predisposto para observar a cidade num outro ângulo, menos centrado no culto da personalidade. Mas não tardo muito a deixar cair os braços, resignado perante a evidência: em Stratford-upon-Avon come-se, bebe-se, passeia-se e dorme-se tendo, de uma forma ou de outra, William Shakespeare como companhia. Talvez, uma vez mais, ele estivesse do lado da razão quando escreveu que “é preferível suportar os males que temos do que voar para aqueles que não conhecemos.”
Com ou sem o fantasma de William Shakespeare a perseguir-me, experimento um doce prazer ao errar por algumas das ruas da cidade desprovidas de multidões agitadas e ruidosas sob este sol que é um prenúncio de Verão. Recortando-se contra o branco e o negro de uma fachada ao estilo Tudor — que domina uma boa parte da arquitectura de Stratford-upon-Avon —, um saxofonista enche o ar de música e convida, através do olhar e da sonoridade, alguns solitários como eu a ficar por ali, olhando sem ver, escutando sem ouvir. Mais cedo ou mais tarde, o meu destino volta a cruzar-se com o de Shakespeare, mesmo que renuncie a toda a essa febre consumista que abala os espíritos de jovens e idosos, homens e mulheres que, como seres autómatos, percorrem etapas da vida de William Shakespeare como quem vagabundeia por um qualquer parque de diversões ou como quem representa numa peça um papel para o qual não está devidamente preparado.
É com um alívio quase insano que, ao fim da tarde, quando o dia começa a perder o seu calor e o sol a adquirir tonalidades douradas, me sento junto ao rio, observando as cores harmoniosas dos barcos que transportam os turistas ao longo dos canais e, mais demoradamente, um outro, com a figura do dramaturgo, segurando um gelado na mão, desenhada sobre um fundo azul, para onde as crianças gostam de conduzir os pais, não atraídos pela imagem mas pelo que se vende no interior.