Fugas - Viagens

Continuação: página 3 de 5

A cidade que nunca prescinde da companhia de Shakespeare

- One shake, please!

William Shakespeare é explorado, como negócio, até à exaustão. As sombras nocturnas avançam rapidamente, luzinhas convidativas anunciam o ocaso e Stratford-upon-Avon, como tantos outros lugares com forte vocação turística, mergulha no silêncio e veste-se de uma solidão da qual se sente órfã durante tantas horas do dia.

A manhã, com a sua luz pura, encontra-me no mesmo cenário, ainda envolto numa quietude que não tardará a extinguir-se. Uma estátua de William Shakespeare, bem próxima do depósito de maridos, recorta-se no centro de todas as coisas e abraçada por um conjunto de outras, menos imponentes, que aludem a personagens das peças escritas pelo homem mais famoso de Stratford-upon-Avon. Esta é a melhor hora para passear pelos tranquilos jardins da Royal Shakespeare Company, depois de me servir do pequeno ferry que cruza, por meia libra, as duas margens do Avon, e num instante estou a lançar um olhar ao Hall’Croft, onde Susanna, a filha mais velha de William Shakespeare, a quem foi destinada grande parte da herança do escritor, viveu com o respeitável médico John Hall. Mais do que inspirar-se na omnipresente temática shakespeariana, a elegante mansão permite uma admirável incursão no reino da medicina do século XVI e é, de todos os locais associados à vida do dramaturgo, aquele que, talvez injustamente, menos visitas recebe. Particularmente agradável é perder-se pelos pequenos trilhos do jardim muralhado, sentindo a fragrância das plantas que John Hall utilizava para elaborar os seus remédios e que lhe granjearam uma fama que ultrapassou as fronteiras de Stratford-upon-Avon, urbe de origens anglo-saxónicas e já na Idade Média importante centro mercantil.

Estar ou não estar

A cidade começa a despertar e, à distância, perscruto os primeiros autocarros carregando turistas. O sol, majestoso, eleva-se no firmamento de um azul-cobalto; do orvalho matinal não restam mais do que resquícios. A vida regressa à sua rotina frenética. Percorro a Church Street e chego rapidamente à Chapel Street, onde me esperam a Nash’s House e o Knot Garden, mais dois cenários que evocam cenas do percurso de William Shakespeare. Uma vez reformado, foi para New Place que ele se retirou, trocando as luzes da ribalta em Londres pelo conforto do espaço onde viria a falecer de causas que permanecem misteriosas. A casa foi demolida em 1759 mas um elegante jardim, uma espécie de oásis verde no coração de Stratford-upon-Avon, ocupa os terrenos onde antes se erguia a residência daquele que também foi um grande empresário para a época — o que lhe terá permitido continuar a escrever. Adjacente aos Knot Gardens fica a Nash’s House, casa bem preservada em estilo Tudor onde viveu a sua neta Elizabeth e que abriga nos dias de hoje uma vasta colecção de mobiliário e tapeçaria do século XVII, bem como uma interessante mostra que traça, com pormenores impressionantes, a história da cidade.

Ao longo do ano, Stratford-upon-Avon atrai mais de cinco milhões de turistas (claramente a grande fonte de receita) e algumas centenas estão já aglomerados na Henley Street, uma das ruas mais antigas desta cidade do condado de Warwickshire. À minha frente, a casa comprada por John Shakespeare, em 1556, numa altura em que era um próspero comerciante e assumia grande protagonismo exercendo o cargo de presidente da câmara local; precisamente a casa onde, oito anos mais tarde, haveria de nascer uma criança cujo nome o mundo se encarrega de perpetuar. Assalta-me a memória, qual sentinela vigilante, uma frase de um tempo em que ele já não era criança, de um tempo que também pode ser deste tempo. “Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.”

--%>