Os olhos plantam-se na lousa e a surpresa, pela originalidade da proposta, não tarda a provocar-me um sorriso bem-humorado.
“Creche de maridos
Ele não desgruda do seu pé?
Ele é um rezingão quando anda às compras?
Seria o seu dia livre de stresse sem ele?
Nós temos a resposta perfeita
Deixe-o ficar na nossa creche de maridos
É gratuito
Nós tomaremos conta dele, ficará seguro entre nós e você poderá passar uma tarde tranquila
A única coisa que tem de fazer é vir buscá-lo quando tiver terminado
E pagar a conta dele.”
É intenso o trânsito sobre a Clopton Bridge agora que a tarde começa a namorar a noite mas quase nulo o ruído naqueles bancos de madeira, fronteiriços a uma das margens do Avon, onde um casal deixa arder em lume pouco brando um sentimento que não carece de palavras para ser expressado. Ele e ela, falando mansamente, contrariam William Shakespeare, a razão mais forte para me embrenhar pelas ruas de Stratford-upon-Avon neste dia tão radioso, tão cheio de sol e com uma luz tão delicada.
“Sofremos muito com o pouco que nos falta e gozamos pouco o muito que temos.” Eles preferem uma outra tese. “O amor é a única loucura de um sábio e a única sabedoria de um tolo.”
Sob as árvores ainda muito despidas, os cisnes, generosos para com aqueles que lhes atiram pedaços de pão, agitam levemente as águas do rio que corre limpo e onde se reflectem uma ou outra nuvem encaracoladas, emprestando ainda mais beleza a um quadro próximo da perfeição.
Sinto vontade de começar pelo fim, pela morte, teimo em pensar na data em que ela chegou para o dramaturgo mas, a despeito de coçar a cabeça, num gesto que tem tanto de mecânico como de tonto, não obtenho qualquer resultado. Razão tinha William Shakespeare quando, num determinado momento da sua vida, escreveu em qualquer rascunho que “a memória é a sentinela do cérebro”.
É extensa a fila para os gelados e, sobre a relva, o formigueiro humano multiplica-se, pais e filhos vivendo em harmonia; idosos, numa atitude mais conservadora, recebendo com prazer os raios tépidos do sol que se infiltra por entre os choupos; jovens remando para cá e para lá, sem destino, disponíveis para amar, outros rindo muito perante a atrapalhação da mulher que, sem beneficiar da ajuda do marido, não consegue mover o barco, limitando-se a andar em círculos. Caminhando, de forma serena e sonhadora, ao longo do trilho que bordeja o Avon, continuo a pedir ajuda à memória da memória e, ainda inebriado com aqueles odores primaveris e o concerto dos pássaros, num chilreio tão alegre, levanto o olhar para a igreja na outra margem com a sua agulha ameaçando furar os céus, tão austera e ao mesmo tempo tão imponente. A Holy Trinity Church, ao que tudo indica a igreja paroquial mais visitada em Inglaterra, acolhe os restos mortais de William Shakespeare e, alegadamente, registos do enterro a 5 de Abril o que, a ser verdade, contraria o que os estudantes aprendem nas escolas — que William Shakespeare faleceu a 23 de Abril de 1616, precisamente no dia do seu aniversário.