Fugas - Viagens

  • Fernando Veludo/NFactos
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Por este Douro acima sob auspícios reais

O apocalipse?

É manhã cedo quando deixamos, então, o Porto para trás. Quase nos passa despercebido este soltar de amarras, mas parece que somos abençoados por sono profundo. Quem despertou fez um cruzeiro dentro do cruzeiro, o das seis pontes portuenses — menos a da Arrábida. Vamos para nascente, sabendo que não chegaremos à nascente. Seguimos contra a corrente, pois, e num instante já estamos na barragem de Crestuma-Lever — a mais próxima do Porto das cinco que o Douro português tem. Se estivéssemos num cruzeiro de oito dias, o Spirit of Chartwell pararia em Entre-os-Rios para uma visita (com almoço) ao Convento de Alpendurada. Nós continuamos subindo as águas do Douro com o sol a querer espreitar entre as nuvens e muito Douro olhos dentro, um Douro que ainda não é Património da Humanidade, mas que nos surpreende com troços belíssimos. É mais povoado e menos cénico, menos postal ilustrado e mais Portugal (rural) real.

Chegamos à barragem de Carrapatelo a falar de barragens, apropriado quando nos preparamos para subir o maior desnível do Douro (e da Europa), 35 metros. A porta, guilhotina, abre-se deixando passar o Spirit of Chartwell e dar “boleia” a um pequeno barco a motor. Fecha e nós que já estávamos no sun deck movemo-nos para a proa, seguindo o conselho da directora de hotel e guia mais do que ocasional Filipa Carrêtas: “É uma sensação quase apocalíptica. Estou sempre à espera de invasores.” Percebemos o que ela quer dizer quando nos vemos fechados em quatro paredes de betão, com o céu a parecer mais distante, num cenário que podia ter saído de um qualquer Mad Max. Contudo, não estamos num filme e o futuro imediato não é o apocalipse. Pelo contrário — devolvidos ao curso normal do Douro, começamos a entrar, de mansinho, em território património mundial.

Deixamo-nos levar entre vales que começam a desenhar-se tão consonantes que até parecem naturais e não o resultado da luta secular entre o homem e o xisto. Deslizamos pelo Douro, que apesar da sua sinuosidade, lânguida, não compete com as estradas, violentamente sinuosas, que persistem em desbravar o isolamento natural destas paragens. Se lá de cima a vertigem desce em direcção ao rio, que se agiganta à medida que nos afastamos dele, daqui de baixo cresce em direcção ao céu. Mas a vertigem é a mesma: essa tapeçaria de socalcos impossíveis, por estes dias, antes de meados de Junho, à espera do “pintor” — esse período em que as videiras habitantes dos monumentais degraus, cobertas da folhagem verde que já vemos, assistem à coloração dos bagos. O Alto Douro Vinhateiro está entre nós; nós estamos no meio dele. E assim acostamos no Peso da Régua, com o “homem da capa” a saudar-nos.

O Museu do Douro olha de cima, incontornável na cor forte e no volume do seu edifício, mas é Lamego que inaugura o programa de visitas do cruzeiro — seguir-se-ão a Quinta da Avessada (Favaios), Castelo Rodrigo e, já no regresso ao Porto, a Casa de Mateus, em Vila Real (no programa de cruzeiros de Verão de cinco dias do Spirit of Chartwell, Lamego e Casa de Mateus ficam de fora — entram Salamanca e Ciudad Rodrigo). Não é muito o tempo disponível em Lamego, o suficiente para uns optarem por conquistar a monumental (e barroca) escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, um dos ícones da cidade, outros espreitarem a Sé e o Museu de Lamego (que vale mais do que uma espreitadela — painéis de Grão-Vasco, tapeçarias flamengas quinhentistas, por exemplo). E acabarem invariavelmente numa das lojas de produtos regionais que povoam o centro histórico. Muito a contragosto de Carlos Alberto Correia, apaixonado por castelos: “Disseram que não podíamos ir ao castelo de Lamego porque é perigoso. Mas eu vi gente nas muralhas.”

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