Fugas - Viagens

  • Fernando Veludo/NFactos
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Por este Douro acima sob auspícios reais

Os que encontramos já estão habituados a cruzar-se com turistas e não hesitam em mostrar-lhes algum pormenor que possa passar despercebido, como a cisterna com uma porta de arco em ferradura e outra de arco quebrado ou um símbolo judaico num portal (Castelo Rodrigo foi porto de abrigo de muitos judeus fugidos da Espanha inquisitorial). Por outro lado, a igreja matriz abre nesta segunda-feira especialmente para os visitantes e as ruínas do palácio estão à distância de um euro. Em terra de amendoeiras, provar as amêndoas doces ou picantes da casa de chá Sabores do Castelo (de um francês, André Carnet, que encontrou na aldeia da mulher, que conheceu em Paris, o refúgio ideal) é obrigatório. Porém, confessamos que o que nos sabe melhor são as cerejas que pilhamos despudoradamente da árvore ali no largo de São João, junto ao padrão da Restauração, perante as ruínas da antiga torre de menagem.

Ainda lhes sentimos o sabor quando o deck do Spirit of Chartwell nos serve de plataforma para um final de dia postos em sossego e, pela primeira vez, com a bênção de algum calor. Não dura muito o sossego e isso é inesperado. Aproxima-se o Princesa do Douro do cais de Barca de Alva: Happy, de Pharrell Williams invade o silêncio — não fora o volume da música, estaríamos muito felizes.

Os dias passam devagar a bordo do Spirit of Chartwell. Porém, quando damos por nós é feriado, o Presidente da República desmaia (sabemo-lo num dos poucos momentos em que temos wi-fi no Alto Douro) e estamos quase a ser expulsos do paraíso. O penúltimo dia leva-nos de volta à Régua. Para pernoitar e, antes, visitar a Casa de Mateus, um dos mais emblemáticos exemplos do barroco civil do país, onde chegamos passando de Cima-Corgo para Baixo-Corgo, a maior subdivisão (51%) da região demarcada do Douro.

É feriado, recordamos, e a Casa de Mateus, projecto de Nasoni concluído em 1749, monumento nacional desde 1911 e aberta ao público desde 1970, está efervescente. Apenas parte do edifício, pertencente à Fundação Casa de Mateus, está aberta ao público — a parte fechada continua a servir os proprietários, os condes de Vila Real. Os guias andam em roda-viva, falam-se várias línguas e o percurso está cheio de desvios. Ainda assim, passamos por salas que fizeram o quotidiano do solar, rodeados de peças históricas (incluindo um relicário com a assinatura de Santo Inácio de Loyola e uma primeira edição ilustrada de Os Lusíadas, edição de 1817 da responsabilidade de D. José Maria de Sousa, morgado de Mateus), e outras que agora são museu religioso — e entramos pelo salão nobre. Nos jardins, a tranquilidade, sobretudo nas traseiras, inspiração francesa a desenhar talhões com buxo. As cameleiras e os cedros impressionam, mas a maior parte dos visitantes detém-se no jardim fronteiro da casa, onde um lago, com escultura de Cutileiro, reflecte a fachada do solar.

São reflexos como os que nos acompanham pelo rio, onde vemos a água replicar “um universo virginal, como se estivesse acabado de nascer e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio […], ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá do fundo a reflectir o seu próprio assombro”. Voltamos ao tal “poema geológico” de Torga na despedida, chegada ao Porto, antes da hora prevista e com o sol, que andou esquivo durante o cruzeiro, a fazer reluzir a cascata colorida da Ribeira. Uma chegada perfeita — que poderia ser igualmente uma partida ideal.

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