Fugas - Viagens

  • Fernando Veludo/NFactos
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Por este Douro acima sob auspícios reais

Conta-nos isto à noite, já no Pinhão para onde o barco navegou enquanto parte dos passageiros visitava Lamego. Pinhão num domingo à tarde parece fechada (até lanchar pode ser missão impossível, ouvimos) e, no entanto, estamos no coração do Douro. As vinhas e o vinho são o ar que aqui se respira — e se capturou nos famosos painéis de azulejos da estação ferroviária local. Foi em 1756 que o Marquês de Pombal estabeleceu a primeira região vinícola demarcada do mundo, porém, o vinho é uma tradição milenar no vale do Douro. Na ressaca do terramoto de Lisboa, e perante a necessidade de reconstruir a capital, o marquês viu aqui uma boa fonte de rendimento — para os cofres do país e para o seu próprio bolso (possuía muitas propriedade em São João da Pesqueira). Afinal, os ingleses já estavam rendidos ao vinho mais distintivo e notável da região, um vinho fortificado obtido com a interrupção da fermentação e a adição de aguardente vínica — o vinho do Porto.

Favaios à mesa

Do centro geográfico do Douro, a cem metros de altitude, subimos até 600 metros, em passeio de meia hora entre o Pinhão e Favaios. Voltamos novamente costas ao rio e embrenhamo-nos na subida ensaiada em muitas curvas que abraçam os montes. Para lá das nuvens, raios de sol tentam abrir caminho no pouco dia que resta e lançam um pó dourado sobre os vales rasgados em degraus e cobertos de vinhas, sobre algumas oliveiras rentes à estrada. No topo dos montes, vemos aldeias e quando estamos nós no cimo vemos o terreno amansado, ondulado por vinhedos, murado por xisto.

Não chegamos a passar pelo centro de Favaios no caminho para a Quinta da Avessada. O jantar será tradicional destas paragens, de onde sai o famoso moscatel: tanto no menu como no local. Pela mesa passam alheira, moira, rojões e a sopa idêntica àquela com que D. Antónia Adelaide Ferreira, a “Ferreirinha”, alimentou os agricultores da região durante os anos negros em que o Douro foi atingido por várias pragas — feita de forma tradicional, na panela de ferro e três pernas, vale toda uma refeição; e a mesa está posta na sala de envelhecimento e provas, um armazém com cem anos onde se guardam dos moscatéis mais antigos do mundo — nos piparões, a idade é de 120 anos. Mas antes do jantar um mergulho na produção do moscatel Favaios, um vinho generoso como o Porto, com uma diferença importante: uma única casta é utilizada na sua produção, moscatel galego, ao invés do Porto, que incorpora um blend de castas. Na sala dos lagares, estes ainda cá estão, mas apenas para servir os turistas: figuras mecanizadas simulam todo o processo de fabrico do vinho e um filme passa em revista o modo de vida da região. Entretanto, temos um relance da história de Favaios e do Favaios, uma história que é de resistência — da proibição da produção do moscatel aqui, a mais de 500 metros de altitude, à criação da adega cooperativa que congrega toda a produção do Favaios e o Favaíto.

A nossa noite é dominada, então, pelo Favaios, bebida de limpidez dourada, sabor “glicerinado” de doce de mel e compotas, com alguns toques de laranja. Contudo, a navegação do dia seguinte é novamente dedicada ao vinho do Porto. Afinal, entramos numa zona mítica desta região. Em breve, na margem sul do rio surgirá a Quinta do Vesúvio, considerada o grande segredo do Douro, uma das propriedades mais lendárias da mítica “Ferreirinha”. Antes, passagem pelo Cachão da Valeira, cuja abertura, no século XVIII, permitiu a navegação para o Alto Douro, e local onde o Barão Forrester, um dos grandes impulsionadores da produção e comercialização do vinho do Porto, encontrou a morte. Ironicamente num dos 250 pontos que ele, no primeiro mapa detalhado do Douro, assinalou como perigosos. Ia acompanhado pela amiga, D. Antónia: ela sobreviveu, diz a lenda, graças à saia em balão, que lhe permitiu flutuar; ele morreu, diz também a lenda, porque não largou as moedas de ouro que levava consigo.

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