Fugas - Viagens

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    Na Oktoberfest de Munique MICHAELA REHLE / REUTERS
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    Na Oktoberfest de Munique
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    Bar em Ceské Budejovice, onde nasceu a Budweiser PAULO PIMENTA
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    Na Oktoberfest de Munique Miguel Manso
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Volta à Europa num copo de cerveja

Por Sousa Ribeiro

Esta é uma história que deve ser lida com um copo na mão, uma longa viagem pelos maiores consumidores da bebida mais democrática do mundo e que nos irá transportar, sequiosos como nunca, por cenários como Ceské Budejovice, Salzburgo, Munique, Dublin e Varsóvia, cidades representantes, por esta ou por aquela razão, dos grandes bebedores. À nossa!

O jardim, emoldurado por intrincadas colunas de madeira, estendia-se em todas as direcções e o calor, próprio da época, fazia-se sentir mas era atenuado por uma brisa suave que inquietava as copas das árvores. Sentados em cadeiras rústicas de madeira, Jesse Avshlomov, Evan Hamilton, Aaron Araki, Richard Hernadez, Tyler Burton e Ryland Hale, todos de sorriso estampado no rosto e armados de cervejas, ergueram as garrafas e brindaram ao momento e à amizade que os aproximava há uns anos a esta parte.

- Cheers!

Estávamos em Santa Cruz, na Califórnia, no Verão de 2007 e Evan Hamilton, Aaron Araki e Richard Hernandez, embora pestanejando quando os raios de sol inundavam os seus olhos, varrendo-os como uma onda, escutavam atentamente a força das palavras de Jesse Avshlomov. “Temos de criar um dia que celebre a cerveja e que, ao mesmo tempo, preste homenagem a todos aqueles que a produzem e fornecem.”

Todos, sem excepção, aplaudiram a invenção, qual semente que há algum tempo germinava no cérebro de Jesse Avshlomov; uma vez mais houve lugar e tempo para brindar, à ideia, à cerveja e à vida — nascia o Dia Internacional da Cerveja que, logo nesse ano, foi celebrado num bar de Santa Cruz por clientes e proprietário, ficando este de tal forma entusiasmado com a ideia que de imediato se lançou na criação de um website para promover o evento, alargando-o a outros pontos do globo.

Festejado sempre na primeira sexta-feira do mês de Agosto (até 2012 era no dia 5 mas quem tem vontade de trabalhar após a comemoração?), o Dia Internacional da Cerveja rapidamente se estendeu a outros países, por força da dinâmica imposta por Jesse Avshlomov e Evan Hamilton a partir da sua base em São Francisco. A primeira medida, logo em 2008, passou por uma incursão por muitos dos bares da cidade, um e outro, grandes apreciadores de cerveja, pedindo às pessoas para celebrarem a data. Uma vez partilhada a ideia, a popularidade assumiu proporções épicas, beneficiando do facto de a cerveja ser, entre os adultos, a bebida mais consensual e mais democrática — uma popularidade que apenas é superada pela água e pelo chá.

Os números não deixam mentir: em 2011, 278 celebrações oficiais em 138 cidades distribuídas por 21 países; em 2012, um aumento significativo, chegando aos 353 festejos oficiais em 207 cidades espalhadas por meia centena de países; finalmente, em 2013, os eventos reconhecidos oficialmente aproximaram-se ainda mais dos 400, tendo Portugal contribuído, embora de forma modesta, para alargar o mapa das festividades — na Praia da Vagueira, em Vagos, em Santo André, distrito de Setúbal, e no Museu da Cerveja, em Lisboa.

Mais simbólico é o facto de o Dia Internacional da Cerveja estar no twitter em português (bem como em inglês) desde 2011, ano em que ultrapassou os 40 mil tweets, abrangendo uma população estimada em mais de 15 milhões de pessoas. No dia 1 de Agosto, um pouco por todo o lado, da Arménia à Turquia, do Japão à África do Sul, o mundo volta a unir-se em torno de uma bebida que alguns estudiosos garantem ter sido descoberta ainda antes do pão e que justificou um elogio de Platão: “Sábio o homem que inventou a cerveja.”

Ceské Budejovice: As irmãs de costas voltadas

Repeti a pergunta quase até à exaustão, dirigida a um vasto painel de amigos de diferentes nacionalidades, de holandeses a portugueses, de espanhóis a italianos, de suíços a austríacos.

- Qual é o país do mundo onde se consome mais cerveja em média?

A resposta, salvo raras excepções, apontava sempre a Alemanha como o grande vencedor. Quando abanava a cabeça, em sinal negativo, a Holanda era designada como segunda escolha. Embora grandes apreciadores de cerveja, quase todos eles, nenhum dos inquiridos suspeitava, nem em sonhos, que cabe à República Checa esse invejável estatuto de líder no consumo da bebida que praticamente existe desde que o mundo é mundo. Mais uma razão para deixar as ruas de Praga, impregnadas de turistas, e rumar a sul, até Ceské Budejovice, com uma história que se confunde com a história da cerveja.

As nuvens, como pequenos flocos de algodão, autorizavam o sol pálido a dirigir os seus raios sobre o casario que reflecte uma perfeita simbiose entre os estilos renascentista e barroco na magnificente praça cuja toponímia homenageia o seu fundador, o rei checo Premsyl Otakar II, corria então o ano de 1265. A atmosfera está, àquela hora, quando o céu se começa a pintar de tonalidades alaranjadas, anunciando para breve o crepúsculo, cheia de vozes indistintas, a vida fervilhando na antecâmara das invasões pacíficas de alguns dos bares daquela que é considerada uma das maiores praças da Europa. Ceské Budejovice, calmamente instalada na confluência dos rios Vitava e Malse, brinda o viandante, logo nos primeiros instantes, com um carácter genuinamente hospitaleiro, expressando ao mesmo tempo uma beleza que me obriga a observar com sublime atenção os mais ínfimos detalhes. A grande metrópole do sul da Boémia, em tempos palco de uma época de bonança face à sua localização privilegiada no eixo de uma importante via comercial, cativa à primeira vista, como alguém que encarna um talento natural para a persuasão.

A moldura da porta do bar vai-se enchendo de jovens sorridentes que, no meio de um adejar agitado, procuram alcançar o balcão. Sinto que tenho tempo e abandono-me à minha quietude mas reconheço que há algo em comum que nos aproxima: a sede. Por agora, enquanto procuro imaginar o sabor da cerveja, assisto ao brusco final do dia e ao despertar da noite, os candeeiros atirando a luz para a praça, as casas recortando-se contra o céu escuro e a soberba fonte Sansón perfilando-se no centro. A beleza harmoniosa ganha ainda mais expressão mas todo o conjunto parece envolto num halo de melancolia, como um quadro perfeito subitamente esquecido pelo pintor. A fonte Sansón (também é marca de cerveja, produzida desde finais do século XVIII) destaca-se pela sua função decorativa mas poucos serão aqueles que a olham manifestando interesse pelo seu passado e pela sua utilidade para os habitantes de Ceské Budejovice — na verdade foi construída para fazer chegar à cidade as águas do rio Vitava. Umas horas antes, perscrutando a imponente Premsyl Otakar II, com os seus quadrados desenhados no chão, desde o campanário da Torre Negra, elevando-se no céu a 70 metros (se fizer as contas ao número de escadas tem garantidas mais de duas centenas) no seu estilo gótico renascentista, a Sansón parecera-me minúscula mas desde logo emblemática da grandeza desta urbe universitária, comercial e industrial.

No meio de um silêncio sepulcral, colonizado pela ânsia de saber mais sobre o seu passado, fui descobrindo, pausadamente e desde o alto do campanário, fragmentos de uma existência nem sempre pacífica. A exemplo do que sucedeu com outras cidades desta região, Ceské Budejovice foi, não raras vezes, vítima de saques, de pestes e de guerras mas a todos os contratempos soube resistir, erguendo-se das trevas ainda com maior pujança. Nos dias que correm, orgulha-se do seu centro histórico, considerado Monumento Nacional, e da perfeita sintonia entre Idade Média e o Renascimento e o Barroco, como irmãos que, caminhando lado a lado, deram as mãos para construir tão magnificente cenário como aquele que me é dado a observar desde as alturas. É já no primeiro quarto do século XIX que a cidade adquire outro motivo de orgulho: em 1825, torna-se pioneira no transporte ferroviário, com a construção da primeira via europeia com vagões puxados por cavalos, uma novidade que provocou um forte incremento na actividade comercial e industrial, facilitando, em simultâneo, o deslocamento de mercadorias para a cidade austríaca de Linz.

Nesse tempo, cada vez mais distante, ninguém a conhecia por Ceské Budejovice mas por Budweis, nome do qual deriva a marca de cerveja elaborada pela Budejovicky Budvar, vulgarmente designada por Budweiser.
Só agora me lembro que já há umas horas sentia sede.
O formigueiro humano mantém-se inalterável mas decido-me, finalmente, e entro num dos bares da Praça Premsyl Otakar II, um antigo talho (muitos deles foram transformados em pubs e restaurantes) onde, ao fim de alguns minutos, recebo das mãos do empregado uma cerveja da mundialmente famosa Budweiser. Depois de a saborear, olho através do vidro da garrafa, como se pudesse encontrar, no seu interior, a história da sua história, fatalmente envolta numa polémica que teima em perdurar, metendo pelo meio tribunais, juízes e questões legais que a justiça tem dificuldade em interpretar e, muito mais, em julgar.

Mas os anos passam e a cerveja vai jorrando.

De um lado da barricada, a Budweiser americana, uma das mais vendidas no mundo, produzida pelo todo-poderoso Anheuser-Busch e para os mais íntimos simplesmente a Bud. Com sede em St. Louis, nos Estados Unidos, a empresa cervejeira líder do mercado norte-americano (as suas vendas aos retalhistas representam quase 50%) foi fundada por Adolphus Busch, um emigrante alemão, depois de adquirir uma outra, naquela cidade do estado do Missouri, praticamente falida. A Budweiser e a Bud Light ocupam um lugar destacado (ver lista) na tabela de vendas mundiais mas o sucesso da primeira remonta já ao início do século passado, com uma produção anual superior a um milhão de barris. Do outro lado, a muitos quilómetros de distância, em Ceské Budejovice, onde agora me encontro bebendo calmamente para não ter de me dirigir de novo ao caótico balcão, outra Budweiser, a que seguro na mão direita enquanto lanço olhares à clientela sequiosa e penso nos milhões e milhões de litros que foram bebidos pelos checos durante mais de 600 anos, desde que a cidade obteve permissão para produzir cerveja. Reza a história — e provar esta tese não está ao alcance dos juízes — que já no século XIV era fabricada em Ceské Budejovice uma cerveja com a designação de Budweiser, se bem que a empresa Budejovicky Budvar apenas foi criada em finais do século XIX (1895), quase dois decénios após a sua eterna rival norte-americana. As batalhas legais vão-se prolongando ao longo dos tempos, cada ano que passa mostra um novo episódio nesta guerra e o final do filme ameaça prender o espectador por um tempo indeterminado.

Será essa uma razão para não pedir outra Budweiser ao empregado? Bebendo mais uma, sempre posso avaliar com maior legitimidade as qualidades e os defeitos (alguns especialistas não têm dúvidas em eleger a checa) destas irmãs com uma relação tão estranha, destas idosas de costas voltadas há mais de 100 anos. Lá fora, a praça abandona-se à sua solidão apenas perturbada pelo marulho da água que brota da fonte Sansón.

Salzburgo: Mozart também ?gostava de cerveja

O verde domina os céus de Salzburgo e o marketing espalha a imagem do filho preferido da cidade que é o coração do coração da Europa um pouco por todo o lado e sob as mais diversas formas, seja em licores, seja em chocolates. E será que Amadeus Mozart, nascido no terceiro andar de uma casa amarela, próxima da porta de entrada do centro histórico e pomposamente baptizado com o nome de Johann Chrysostomus Wolfgang Theophilus, gostava de cerveja? Num poema traçado pela mão do compositor, ele próprio confessa que terá bebido umas boas canecas, não na Áustria mas na Alemanha, antes de escrever a ópera Idomeneo, fazendo várias incursões a uma famosa cervejaria.

Salzburgo é uma cidade que respeita os peões e as bicicletas e por ela gosto de caminhar observando as agulhas das suas igrejas espetando-se na abóbada do mundo, os seus campanários cegos, as suas cúpulas que se assemelham a bolbos e os seus telhados dourados reluzindo ao sol. A manhã já vai adiantada e eu procuro absorver, tanto quanto possível, os seus tesouros; mas, sem grande demora, interiorizo como é difícil escapar à associação entre a cidade e o músico e, respeitando esta cumplicidade, vou errando sem traçar um plano, ao mesmo tempo que me interrogo se não o faço simplesmente com o pretexto de adiar a minha entrada num dos bares para beber a primeira cerveja do dia. Um casal de turistas, sentado na concorrida Mozartplatz, come apfel strudel e bebe Stiegl, a cerveja local, recebendo nas faces avermelhadas, não sem uma certa gratidão, os raios tépidos de um sol que tarda em abandonar a sua timidez. A Stiegl pela qual os jovens passam os dedos, os dois ao mesmo tempo, como se fossem almas siamesas programadas para agir através de um impulso único, exerce um certo fascínio sobre a minha pessoa mas, enchendo-me de forças, sinto-me um verdadeiro exemplo da resistência e opto por um café que acompanho com memórias de uma austríaca que sente Salzburgo como poucos.

- Estás a falar a sério? Não acredito! Eu prefiro um bom vinho e a Áustria tem alguns de grande qualidade.

Perante o cepticismo de Michaela Davenport, casada com um inglês que correu mundo, confronto-a com os números, bem recentes, que apontam o povo austríaco como o segundo maior consumidor de cerveja, com uma média de 108 litros por cabeça (por boca, perdão), ainda assim bem distantes dos checos, com 143 litros.

- Se o dizes… Nos meus tempos de juventude, era uma grande apreciadora e reconheço que a cerveja austríaca é uma das melhores do mundo. A Trumer é muito saborosa mas a minha preferida é a Augustiner Bräu, em tempos feita pelos monges. Não deixes de passar pelo bar, seguramente que ficará na tua memória.

Ao lembrar-me destas palavras, tornei-me um ser fraco, sem qualquer resistência e, seguindo agora sem prestar grande atenção a toda e qualquer alusão a Mozart, expressa em padarias, drogarias, livrarias e sei lá que mais parafernália em torno do vulto da música, lancei-me ao encontro do Braustübl, onde cheguei, sem paragens, poucos minutos depois de os empregados terem aberto as portas mas, talvez como teste à minha capacidade, ainda com tempo para admirar o tom pastel do edifício, bem como os seus arcos graciosos encimados por letras garrafais (nada tem a ver com garrafas) em azul, anunciando o meu destino e cenário para um bom par de horas (e outro de cervejas). O Braustübl faz parte do conjunto que abriga o Mosteiro de Müln, uma instituição onde se começou a fabricar cerveja em 1621, utilizando uma receita que está bem guardada no segredo — ia escrevendo deuses — dos monges e assente em técnicas de produção ancestrais que o actual mestre cervejeiro, Hansjörg Höplinger, se encarrega de manter afastados dos olhares dos mais curiosos. À medida que a tarde avança, o número de clientes vai aumentando e eu, pousando a minha caneca de cerveja sobre um barril de madeira, um dos muitos que decoram um espaço nobre mas de grande simplicidade, espero que a qualquer momento a lotação se esgote. Antes de repetir o pedido (havia prometido um par), conduzo os meus passos pelas diferentes salas, um total de sete, onde, contas bem feitas, cabem quase mil pessoas, às quais devemos acrescentar outras 1500 no jardim, o maior em toda a Áustria.

Perfeitamente consciente, senti um peso na consciência: estava a ignorar tudo — e não é pouco — ou quase tudo o que a cultura me oferecia na cidade onde Mozart é omnipresente, elevando o seu nome bem mais alto do que qualquer agulha, campanário ou cúpula. O subconsciente deu ares de quem me compreendia:

- Estás em trabalho!

Órfão de culpas, defini um rumo para o dia que haveria de chegar dentro de algumas horas, um percurso que me iria levar, assim o segredo dos monges não me voltasse a tentar, à catedral construída no século VIII (destruída na sequência de um incêndio em 1598), ao número 9 da Getreidegasse onde nasceu o génio Amadeus, à Fortaleza de Hohensalzburg, servindo-me do teleférico, à Domplatz, ao Palácio de Mirabell e a tantos outros lugares onde, quase posso jurar, me vou enriquecer culturalmente.

Mas, para já, percorro uma das margens do Salzach, admiro a sua beleza barroca e escuto um murmúrio melodioso, como se as águas do rio tivessem resolvido, neste radioso final de tarde, imitar o menino precoce que Salzburgo continua a embalar com tanta ternura como a que expressa uma mãe por um filho.

Munique: Oktoberfest e o resto

Já me cheirava a perseguição. Ao longo de 115 quilómetros que separam Salzburgo de Munique, o acaso levou-me a passar os olhos por uma publicação que, entre outras temáticas, abordava a questão das origens da cidade bávara. Na verdade, a toponímia München deriva da palavra Mönche, cujo significado é monge e que, depois da experiência vivida na cidade de Mozart, desde logo associei à cerveja. Começava a achar que a ideia peregrina de escrever sobre o dia festivo da bebida, levando-me desta feita a um palco que o mundo em geral associa à cerveja e à sua mediática Oktoberfest, além de tudo o que já tinha — por pouco não escrevia bebido — vivido, podia causar danos irreparáveis na minha reputação. Li mais atentamente o artigo e os meus receios confirmaram-se: trata-se de uma referência aos monges beneditinos de Tegernsee, os fundadores (século VIII) da aldeia que deu origem à cidade da Baviera mas também eles directamente implicados na produção de cerveja num mosteiro localizado num lugar sereno, no vale com o mesmo nome. Actualmente, abriga uma cervejaria, popular entre alemães e estrangeiros, dando a conhecer ao mundo a Tegernsee Hell, uma cerveja que alguns conhecedores denominam como sendo um pedaço do paraíso.

Mas Munique não é apenas cerveja ou a cidade que acolhe um dos eventos mais populares do mundo, juntando, todos os anos, na segunda quinzena de Setembro, milhares de apreciadores em busca de milhões de litros de cerveja. Capital da Baviera desde tempos medievais, conheceu períodos de grande prosperidade a partir do século XVII e na segunda metade do século XIX e hoje é cenário de um importante centro universitário e intelectual, com amplos motivos de interesse ou, como gosta de se definir, uma metrópole com alma.

Quem chega para beber cerveja, o mais certo é que regresse a casa ignorando que Munique possui cerca de 300 museus, alguns deles de visita obrigatória, igual número de igrejas (tem uma maioria católica) e uma praça emblemática como é a Marienplatz, verdadeiro coração da cidade, com o imponente edifício camarário; não muito distante, a Frauenkirche (Igreja de Nossa Senhora), uma obra de inícios do século XV — erguida com uma capacidade para 20 mil pessoas, superando, nesse tempo, o número de habitantes —, com as suas duas torres gémeas que são visíveis de diferentes pontos, ofuscando as igualmente significativas Peterskirche (a mais antiga) e Michaelskirche, dedicadas, como está bom de ver, a São Pedro e São Miguel, respectivamente. Os amantes da ópera também não terão razões para ficar defraudados e teatros são quase seis dezenas, assim como algumas orquestras de renome internacional. Uma agenda cultural que necessariamente provoca sede, a quem a visita e até a quem escreve — e logo imagino uma caneca de grandes dimensões na Hofbräuhaus, a mesma para onde Mozart gostava de se escapar na antecâmara dos seus grandes desafios. Antiga fábrica de cerveja, já em finais do século XV(I — o imóvel onde funciona é do século XIX —, a cervejaria acolhe diariamente mais de oito mil bebedores e hoje eu sou um deles, erguendo bem alto a mass (um litro) que a kellerine (empregada) deposita à minha frente, não sem antes me assustar quando a vi carregar três canecas em cada mão e dirigir os seus passos apressados ao encontro de quem está ali apenas para trabalhar.

- Zumwoll! Prost!

À saúde do pão líquido dos muniquenses.

Caminho ao longo de uma artéria pedonal, a esta hora pouco preenchida, e reparo como uma mulher alta, muito alta, cativantemente despreocupada, quase provoca um torcicolo num rapaz com pouco cabelo e traços latinos. Ela é loira, o cabelo sedoso até o vento atrai, mas não evidencia um único trejeito de arrogância. Mais do que nunca, parecem-me desprovidas as anedotas sobre loiras.

- Qual é a diferença entre uma cerveja e uma loira?

- Do pescoço para cima não têm nada.

Não percebo a piada.

Dublin. Aqui quase não há loiras

A expressão é tipicamente portuguesa, nunca a escutei em outras bandas, mas quantos de nós já não ouviram, num bar ou num restaurante, numa taberna ou numa casa de pasto, um cliente pedir ao empregado:

- Uma loirinha!

E o empregado, familiarizado com a definição, pousa uma cerveja na mesa do apreciador de loiras.

Dublin, a cidade de James Joyce, a cidade do Temple Bar, a cidade da Guinness, a cidade onde, como as anedotas, pedir uma loira quase não faz sentido. Poucos a sabem tirar como os irlandeses, deixando-a repousar por instantes, um pouco acima de metade do copo, antes de a encherem. A música está eternamente presente, um pouco para lá do último toque do sino a anunciar o derradeiro pedido, como presentes estão os pubs irlandeses um pouco por todo o mundo, qual bandeira de um país que surge em quarto lugar na lista dos grandes consumidores, fazendo de cada momento um bom pretexto para beber uma cerveja.

Deito um olhar à rua, o céu manchado de nuvens ameaçadoras, qual cortina ameaçando abrir-se. No cérebro martela-me a memória de uma noite bizarra, perdido algures numa aldeia de cujo nome não me recordo nem cheguei a anotar no meu caderno de apontamentos — mas seguramente a norte de Galway. A noite já caíra, escura, um vento forte fustigava as árvores, no horizonte um relâmpago iluminava o céu sem estrelas. Entrei num pub, reinava o silêncio, ansiava por encontrar um quarto para descansar o corpo dorido que já só por favor carregava comigo. Aconselharam-me calma, que tudo se haveria de arranjar, não havia música desta vez, o silêncio apenas era interrompido de vez em vez, palavras imperceptíveis. Um homem já para lá da meia-idade pediu uma pint para mim e eu, sem perceber o que se passava à minha volta, brindei, recebendo em troca um sorriso fugaz, de lábios cerrados, do meu companheiro de bebida. Estava num velório. Olhei à volta, procurando encontrar a morte onde quase sempre se descobre vida, a tristeza nos rostos quase sempre alegres.

- That’s life - dizia-me aquele que me parecia um homem bom. E era.

Peço mais uma Guinness e deixo que o tempo corra sem pressa. Poiso os olhos em Joyce, em Dublinenses, publicado há exactamente cem anos. “Sentiu que o seu corpo suspirava de novo pelo conforto da taverna. O nevoeiro começava a enregelá-lo e veio-lhe à cabeça que talvez conseguisse comover Pat, lá do O’Neill. Não poderia cravar-lhe mais do que um xelim, e um xelim não servia para nada. Mas tinha de arranjar dinheiro, fosse onde fosse. Gastara o último penny naquele copo de preta e em breve seria tarde de mais para arranjar dinheiro em qualquer parte. De repente, passando os dedos pela corrente do relógio, lembrou-se da casa de penhores de Terry Kelly em Fleet Street. Aí estava a solução! Porque não pensara nisso mais cedo?

Seguiu rapidamente pela estreita viela do Temple Bar, resmungou entre dentes que podiam ir todos para o diabo, porque ele ia gozar uma bela noitada.”

Estou em Temple Bar, não tenho razões para resmungar e vou, também eu, passar uma bela noitada.

Varsóvia: A cerveja em luta com a vodka

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