Entra-se no bairro, uma espécie de ilha gigante, animada e colorida, e é como se o Porto urbano se dissipasse. Há vasos em cada porta, tanques de roupa por todo o lado, velhos a apanhar sol junto a fachadas bem tratadas. Germano ziguezagueia pelas ruas desta aldeia incrustada na cidade até à mercearia do senhor Armando, instalada no bairro há 33 anos. “Já foram três, mas agora só há uma”, explica Germano Silva antes de entrar e se perder uns minutos à conversa com o merceeiro.
Regressamos à rua, passamos pela Praça da Alegria, entramos na Rua de S. Victor, com as suas muitas ilhas e Germano, que cresceu numa, mas não ali, lamenta que estes espaços típicos portuenses não tenham tido, até agora, obras que lhes dessem todas as condições e permitissem a instalação de novos moradores. “Em S. Victor temos estas ilhas de má memória, eram sítios de muitas epidemias, mas as ilhas não têm de ser só um estendal de misérias. Existe, nestes sítios, uma comunidade de partilha muito acentuada, que devia ter outra atenção”, defende.
É em S. Victor que Germano entra noutra mercearia, a do senhor José. “José Marques de Sá Júnior”, como o próprio se apresenta. Velha, com as prateleiras de madeira até ao tecto mal cheias de produtos a transpirar pó e com marcas que nem reconhecemos, a mercearia está ali desde 1949 e o dono, de 86 anos, aparece retratado no livro do jornalista. Germano mostra a página ao merceeiro, disse que trouxe o livro para lho oferecer, autografa-o e ouve o homem contar como já tinha mandado comprar um exemplar e como, agora, o irá oferecer à “cozinheira”, que também manifestara a vontade de ter um.
Excesso de paixão
Fora de portas, anda-se um pouco mais e espreita-se de novo o Douro. Germano explica que ali havia azenhas, e que o pequeno bairro/ilha que se avista mais abaixo na encosta se chama, por isso, Bairro dos Moinhos. Mais uns passos e entramos no Cemitério do Prado do Repouso — mais um dos espaços da cidade que foi, em tempos, uma quinta do bispo.
No primeiro cemitério público a ser inaugurado no Porto, em 1839, Germano encaminha o passo para o túmulo de Teresa Maria de Jesus, com a sua imagem em mármore de um frágil Santo António. No livro Caminhar pelo Porto, e à Fugas também, Germano conta como o túmulo foi mandado construir por Henriqueta Emília da Conceição, uma bela prostituta que odiava os homens por, supostamente, ter sido violada em criança e que se apaixonou irremediavelmente por Teresa, pouco antes desta adoecer com tuberculose e morrer. Durante o enterro, que se realizava à noite, Henriqueta pediu para se despedir, sozinha, da sua paixão e, sem que a vissem, cortou-lhe a cabeça e levou-a para casa.
Descoberta a macabra recordação foi julgada, mas absolvida, por se considerar que agira num “excesso de paixão”. O passeio que tínhamos combinado podia terminar aqui, enquanto vemos as rosas vermelhas presas entre os braços do santo (postas por quem, não se sabe) e uma mulher de cabelos brancos a orar junto ao túmulo, antes de afagar o braço da estátua e se afastar. Mas estamos com Germano Silva e enquanto estamos com Germano Silva há sempre mais uma história para contar.