Da ribalta à solidão
A passos tantos, o assunto planta-se na agenda do caminheiro: haverá maneira de escapar por umas horas ao vaivém incessante de turistas? A primeira fuga tem ponto de partida pouco antes do teatro romano. Um escadório na escarpa sul leva a um dos mais importantes locais de sacrifício dos nabateus. O turista tresmalhado tem à sua frente meia hora a galgar centenas de degraus até alcançar uma pequena plataforma situada a duzentos e tal metros de altitude. O panorama tem quase 360 graus e entre o relevo montanhoso vislumbra-se bem o Jebel Haroun (o Monte Hor da Bíblia), um local sagrado para as três grandes religiões monoteístas originárias do Médio Oriente, que se supõe guardar o túmulo de Aarão. A perspectiva da cidade é esplêndida, uma visão da ribalta agitada e anunciando-se a norte a escarpa onde foram esculpidos alguns dos cenários mais brilhantes de Petra, os Túmulos Reais, e a sul a românica Avenida das Colunas, ladeada pelos vestígios de uma igreja cristã do século VI, relicário de esplêndidos mosaicos bizantinos.
Face à visão de um espaço urbano tão sofisticado, símbolo e produto de impressionantes cruzamentos culturais (que poderão ter contado com artistas e arquitectos idos de Alexandria e de Antioquia, ou mesmo da Grécia), o mistério guia a pergunta fundamental: que povo foi este que tão subitamente abandonou as suas derivas pelo deserto e construiu em região tão inóspita a sua admirável capital? Que deixou o legado de um alfabeto que se tornaria o embrião de uma das línguas mais faladas em todo o mundo, o árabe? A sua origem e o seu destino permanecem um enigma, assim como a celeridade com que passaram da condição de tribo nómada à de construtores de um pequeno império, que se estendia de Damasco à península do Sinai e ao território actualmente ocupado pela Arábia Saudita.
A ascensão do Jebel Haroun, a pé ou a bordo de um burrico, aventura proposta por alguns guias beduínos, é um dos percursos pedestres mais exigentes (e o mais facilmente conotado como off the beaten track), mas o turista enfastiado de multidões e a sonhar com andanças “alternativas” fará bem em ajuizar sobre o acerto do programa. Sendo o Jebel Haroun um lugar de peregrinação, há em Petra quem não veja com bons olhos tais excursões. E, na verdade, há possibilidade de inúmeras outras expedições pelos vales e montanhas próximos, com aliciantes paisagísticos e culturais de equivalente nomeada, como algumas aldeias beduínas ou a extraordinária obra de engenharia hidráulica constituída por canais, túneis, aquedutos e cisternas realizada pelos nabateus há dois mil anos num território já então com fraca pluviosidade e séria escassez de água.
A esmagadora maioria dos visitantes limita, naturalmente, as suas deambulações ao centro urbano de Petra, mas é espantoso o número de vestígios arquitectónicos do velho reino (muitos ainda por desenterrar) dispersos pelo Parque Arqueológico de Petra, uma ampla área que abrange vales, encostas e cimos montanhosos, e que conta, apesar de tudo, com uns quantos lugares solitários que raramente são contemplados com a curiosidade turística e se reservam aos andarilhos mais perseverantes.