A herança cultural
O sol, ainda baixo, despontava no horizonte com raios agudos e, por momentos, recuperei as palavras de Gilles Thual.
- Mesmo a Little India não mostra nada do que é a Índia.
Para alguém que viaja com uma mochila às costas, conhecedor da Índia, verdadeira e profunda, a miniatura que vou perscrutando ao início da manhã, com as suas cores cheias de vida, talvez pouco ou nada mostre de um país demasiado grande; mas a Little India tem a sua magia e nada melhor do que passear-se por ela durante o fim-de-semana, quando todos os indianos dividem o seu tempo entre nada fazer, como alguém que apenas aguarda a passagem de um autocarro, ou ir às compras, precavendo-se para mais uma semana de trabalho e adquirindo os cheiros que os levam de volta às origens.
Contrariando a ideia do turista francês, aprecio a minha errância pela Little India que se semelha a um lego, com as suas casas térreas de múltiplas tonalidades, os seus restaurantes e as suas lojas abrigadas do sol pelas arcadas, vendendo disto e daquilo, saris ou telemóveis, especiarias ou ícones, as suas gentes num movimento entre a indolência e a dinâmica.
Ao longo da Serangoon Road e da Race Course Road, não passam despercebidos os quatro templos dedicados a diferentes divindades: o Sri Veeramakaliamman, o Sri Srinivasa Perumal, o Sakaya Muni Buddha Gaya, também conhecido como o Templo das Mil Luzes, e, mesmo em frente a este último, o taoista Leong San See.
Como a Little India, também o Kampong Glam retém muita da sua herança cultural, dominada pela Mesquita do Sultão, com a sua cúpula dourada, atraindo fiéis e turistas que facilmente ignoram outras duas, a Hajjah Fatimah e a Malabar Muslim Jama-Ath, e mesmo o impressivo Malay Heritage Centre, construído em 1843 para o último sultão de Singapura, Ali Iskandar Shah.
Quando a noite está prestes a cair sobre a cidade, ChinaTown é o próximo destino, com a sua efervescência e o seu comércio, em parte já órfã da alma que a caracterizava mas ainda visível desde que se abandonem as suas ruas mais movimentadas que fascinam milhares de turistas, muitos deles indiferentes à elegância de alguma da arquitectura e de templos como o Buddha Tooth Relic (mesmo se alguns especialistas duvidam da autenticidade do dente e de alguma vez ter pertencido a um buda), o Thian Hock Keng e, estranhamente encaixado no meio da comunidade chinesa, o Sri Mariamman, o templo hindu mais antigo de Singapura, originalmente erguido em 1823.
O início da manhã do dia seguinte encontra-me no Colonial District, onde, paradoxalmente, ganha expressão a Singapura contemporânea, com os magnificentes Gardens by the Bay, um conjunto de três parques em 101 hectares que ligam à marina e, com uma arquitectura que não parece deste mundo, o Esplanade – Theatres on the Bay e o Singapore Flyer, mais os seus centros comerciais onde se passeia de barco e o casino, um novo apelo ao consumo ainda mais exacerbado quando, desfrutando das minhas últimas horas em Singapura, ora subo, ora desço a Orchard Road, a verdadeira meca do comércio, tão distante do tempo (século XIX) em que pouco mais havia do que plantações de pimenta e de noz-moscada. Não muito longe, esse passado verde parece estar de volta, nos admiráveis Singapore Botanic Gardens e no National Orchid Garden, com 60 mil plantas que enchem a atmosfera de odores primaveris. E os mesmos inundam o ar no momento em que, deixando a Orchard Road, me embrenho pela elegante e serena Emerald Hill, com as suas casas delicadas, de tantas cores, as suas portadas, os seus jardins, a vida decorrendo numa harmonia tranquilizadora.