“A vida está difícil. Devia ser mais relaxada… Mas tem de ser, temos de trabalhar. Se lá [em Santiago] uma laranja é 10 escudos [cabo-verdianos], aqui é 100”, conta Aniida, de 28 anos, encetados em Santiago, enquanto tira um café no bar do Iberostar Club Boa Vista, o resort que nos acolhe por estes dias. Tudo porque na terra onde nasceu “tem chuva, horta, pé de café, uva, banana, e aqui não”. Nas mercearias da Boa Vista, grande parte dos produtos são importados (Portugal é o maior fornecedor de Cabo Verde, com uma quota de 43,3%) e foram inflacionados pela “explosão” turística na ilha onde, apesar da escassez de água, as grandes fontes de sobrevivência são a agricultura e a pesca. “Há quem vá tentando impor aqui culturas de fora, mas, se eu tenho cachupa, vou querer comer esparguete?”, reclama Djão, com um pé atrás em relação ao turismo, mesmo sabendo ser este o maior impulsionador de emprego no país.
São “profundas” as mudanças na Boa Vista, “com dois mundos a emergirem dentro de uma ilha que não tinha mais de 4000 habitantes” há oito anos, altura em que Andreia Valdigem, jornalista portuense, escolheu viver no arquipélago da morabeza – a doce maneira de receber dos cabo-verdianos, que convida a entrar, a ficar e a dançar. A viragem começou com a abertura do aeroporto internacional do Rabil, em 2007, e ganhou força com a sua ampliação. Agora, “a conhecida ‘ilha das Dunas’, anunciada como o El Dorado de Cabo Verde”, situa Andreia, recebe uma média de seis mil turistas por semana. Muito diferente do tempo em que, “numa urgência, os carros tinham de parar ao longo da pista do aeroporto, com os faróis acesos, para a aeronave levantar”, como recorda Eduardo Moraes Sarmento, doutorado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão e especializado em Turismo com Cabo Verde no centro das equações. Neste momento, a Boa Vista é o principal centro receptor turístico do país, “mas ainda há um grande contraste entre a população local e os turistas”, garante o investigador. O que se vê é uma linha que separa o paraíso azul das piscinas (em regime “tudo incluído” e em quadro resort), onde o do not disturb é respeitado à risca, da vida quotidiana da ilha.
Jogar à bola, comer papaia
Seja pelo facto de ser época baixa ou pela separação de que fala Moraes Sarmento, nas ruas de Sal Rei, o centro urbano da ilha, não se sente o peso dos passaportes e câmaras fotográficas. O ruído é manso e são mais os táxis do que os passageiros. Mulheres com força para carregar uma família inteira levam, desta vez, bacias floridas de papaia, manga e banana sobre as cabeças. As ancas são sempre largas, coloridas, e os olhos espiam qualquer pele luminosa que se cruze no caminho. No Esplanada, bar com tecto de folhas secas de palmeira, come-se uma boa cachupa guisada com ovo estrelado. É o prato do pequeno-almoço, do almoço, do lanche e do jantar, o que nunca cansa um bom cabo-verdiano, ciente da vida medrante numas garfadas de calorias.
É também em Sal Rei onde há mais rua: de noite, os amadores do Santa Bárbara tocam mornas e bebem Strela (a cerveja nacional), mas “só no fim-de-semana”, como ressalva João, pescador da Praia (capital do arquipélago, situada em Santiago) atracado na Boa Vista; ao meio-dia, joga-se à bola de pé descalço no campo municipal. Apesar dos quase 30 graus, os ventos alíseos e os banhos de festa na praia do Estoril põem o clima sereno. E às horas em que a vila parece ter tirado uma sesta, o mais certo é encontrarmos música e corpos que dançam no Bairro da Barraca, renomeado Bairro da Esperança para que se dissipem aos olhos mais desatentos as suas origens clandestinas. “Vivem lá muitas pessoas que trabalham nos hotéis e vendedores de artesanato, do Senegal e da Guiné”, descreve Djão. Numa volta pisam-se charcos, vende-se café, seca-se peixe a céu aberto. A música dispara das janelas, assim como as moscas, na denúncia de uma frágil estrutura sanitária. Aqui se montou o bairro da sobrevivência por se tratar de solo fértil. “Havia ali uma fonte que antigamente fornecia água a toda a vila”, aponta Djão, na terra onde já se contaram sete anos sem chuva.