“É um país onde os maiores recursos são os humanos”, nota o investigador Eduardo Moraes Sarmento. E é neles que pulsa Cabo Verde. Voltamos, então, à vida simples, que implica acordar cedo para soltar a rede ao mar, reparar o barco, ir ao trapiche tirar a calda à cana-de-açúcar, cortar a lenha que mais tarde irá abraçar o xerém. Maria do Carmo está lá fora, debaixo da ramada do maracujá, a espreitar o milho lento na panela de alumínio. “Nós já não pomos porco, que o meu marido não come… Quando é cachupa rica, pomos milho, feijão-pedra, carne, chouriço, batata-doce, couve, alho, galinha, mandioca.” E quando é pobre? “Ahh… Leva sempre milho e feijão! E depois juntamos atum, que é o melhor”, ensina a cozinheira no país onde o peixe é a fartura que mais mata a fraqueza (Djão já nos havia explicado que em Cabo Verde ninguém gosta de dizer “fome”, porque esse é um assunto sério).
Perguntamos ao marido, o senhor Brito, o que fazia antes de passar o tempo a dedilhar a viola. Sorri dos olhos às mãos para contar que “era pescador, agricultor, carpinteiro, pedreiro…” “Então disseram-me se fazia aquilo tudo, não podia ter profissão.” A casa, erguida pelas mesmas mãos da viola, continua em construção. Sabe que se um dia parar, fica sem isco na vida (e assim tem menos um imposto para pagar). Mostra fotografias dos filhos, convida a beber grogue. No terraço voltado para a planície cor-de-terra – como, aliás, é quase toda a ilha – conta que antigamente, durante as festas juninas de Santo António, havia quatro bailes. “Entretanto acabaram porque agora as pessoas são de outras ilhas e africantes [refere-se aos imigrantes vindos sobretudo do Senegal e da Guiné, em busca de uma vida melhor alavancada pelo turismo].” A mulher aproxima-se para adicionar à conversa: “O mundo está a mudar e agora tem muito atrevimento.” Como assim, atrevimento? “Antes não havia gás, era tudo a lenha. E agora quando cozinho na lenha, os meus filhos reclamam. Não gostam do cheiro a fumo.”
Figueiras e tarrafes
A catchupa a ficar pronta e Diddy à espera na pick-up de cheiro a novo. Na Boa Vista, andar de táxi – ou de “aluguer”, como também se diz por aqui – é das poucas maneiras de conhecer a ilha: primeiro, porque os caminhos nem sempre estão marcados; depois, porque os motoristas são bem mais do que mãos no volante: tornam-se companheiros de prato, partilham hits musicais, contam histórias com a leveza que lhes vai na boca. Enfiam-se as rodas em trilhos de terra seca, já os arbustos rasteiros e as palmeiras são miragem, para desenhos na areia longa da praia de Santa Mónica. Os caranguejos fogem correntes para o mar, em velocidade contrária à que se vive na ilha. Avistam-se três fatos de banho ao longe, bem longe. Dá tempo de gritar, mergulhar a cabeça nas ondas brancas e voltar ainda antes do eco.
Quebramos a sesta de Diddy para seguir viagem, rumo à aldeia de João Galego, no Norte. A publicidade desbotada da Coca-Cola aguenta-se no ramo de uma acácia; ao lado, o rosto de Amílcar Cabral surge retocado numa parede. “Isto é o centro”, indica Diddy, e o centro é uma praça onde se encaixam seis carros noutro tanto de casas. João Galego tem pedra no chão para que os cavalos passem a galope a fazer acontecimento na aldeia. O café estar fechado não é problema, que do passeio se faz esplanada para jogar às cartas, às escondidas do sol africano. Também é assim no Fundo das Figueiras ou em Cabeça dos Tarrafes, aldeias encolhidas, cada vez mais demoradas. Há sempre um comerciante a tentar vender artesanato, com um guião comum: “França? Itália? Portugal? Uma ou duas semanas na ilha? Cabo Verde é no stress.”