O tio, Mário Jardim Fernandes, é o responsável pela produção vinícola (e quem geralmente guia as visitas à adega), Catarina ajuda no resto. O elevador que subiremos daqui a pouco foi construido em 1996 para que os mais velhos da família ali conseguissem chegar mais facilmente (“a minha avó já tem 93 anos”) e “para os turistas também” – pagam 7,5€ (ida e volta).
Antes existia apenas o elevador de carga – o “frigorífico”, como todos lhe chamam (e não haveria melhor forma de o descrever) –, com um ar precário e periclitante, que será este ano substituído por um teleférico moderno, para que não seja preciso subir os 360 degraus ziguezagueantes entre as duas plataformas, que nos fazem suar e desejar ter feito o percurso ao contrário. Mas lá trepamos, 180 escadas agora, outras tantas no final, até ao parque de estacionamento.
A cabine, de vidraças rasgadas ao mar, vai subindo, subindo, quatro minutos que nos parecem muitos mais, a fajã cada vez mais pequena, a costa rendilhando-se até ao horizonte. Durante estes dias vamos constatar que não há espaço para medo de alturas na Madeira. Ainda bem. Não há vertigem que vença esta paisagem.
De curvas ao abismo
O percurso que fizemos de barco, lá em baixo, repetiremos quase na totalidade no dia seguinte, lá por cima. Uma lição de como a perspectiva pode mudar muita coisa. Com um extra: o passeio faz-se num negro e reluzente sidecar. Óculos de sol, casaco apertado, capacete com microfone e auscultadores integrados para que consigamos comunicar com Filipe Freitas, mentor da Madeira Sidecar Tours, e com outro jornalista, que segue à pendura. Partimos ao som dos roncos do motor, o corpo dançando levemente na trepidação.
Seguimos pela Estrada Monumental, antiga via principal de ligação entre o Funchal e Câmara de Lobos (até à construção da via rápida), e vamos serpenteando a costa, quase sempre com o mar como companhia, as vistas interrompidas a espaços por zonas de habitação e curvas. Ao entrarmos no concelho de Câmara de Lobos, vão-se sucedendo centenas de bananeiras arrumadas em poios encosta acima. Passamos pelo restaurante Churchill’s Place — “era antiga casa de férias do ex-primeiro-ministro inglês” — e paramos no miradouro do Pico da Torre, os telhados a formar um U lá em baixo, abrigando o porto de pesca. A paragem é curta: as fotografias da praxe, a troca de lugares. Agora vamos no banco de trás da mota.
“Geralmente procuramos ir sempre pelas estradas antigas, que são mais interessantes e bonitas, mas como têm pouco tempo vamos pela via rápida”, indica Filipe. Estrada veloz, vários túneis. Em menos de nada chegamos ao destino. “As vistas foram bonitas, não foram?”, ironiza. Estamos de volta ao Cabo Girão, agora cá no alto do promontório. Um novo desafio à vertigem.
“Escreveu Nietzsche que para amar o abismo é preciso ter asas. Eu diria que basta apenas ser homem. Mas madeirense...”
A curta passagem que Miguel Torga deixou no diário a 26 de Agosto de 1980 terá sido escrita na Eira do Serrado, mirando, lá em baixo, o Curral das Freiras. Mas tanto podia ter sido aqui, no cimo do Cabo Girão. Estamos no mesmo concelho, mas sob os pés só temos mar. Caminhamos sobre o skywalk, inaugurado em 2012, o vidro repleto de pequenas bolinhas brancas que parecem estar ali para nos assegurar que pisamos chão, transparente mas grosso e seguro. O oceano aguarela-se de azuis lá em baixo, terminando numa leve espuma sobre a praia cinzenta, acolá uma fajã quadriculada de verde. Só então a panorâmica se alarga. Vemos o casario disperso nos montes de Câmara de Lobos, lá ao fundo adivinha-se o Funchal desmaiado entre nevoeiro. No entanto, cedo o olhar volta a recair no sopé do cabo. Afinal estamos no promontório mais alto da Europa, o segundo na contagem a nível mundial. Entre o leque de bolinhas, a inscrição em cinco línguas não deixa esquecer: “Os seus pés estão 580 metros acima do nível do mar”.