Fugas - Viagens

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Madeira, o prazer de um abismo verde e azul

Por Mara Gonçalves

É a Madeira para quem já a conhece ou para quem quer descobri-la de uma perspectiva diferente. Seja de barco, num vertiginoso elevador ou no trepidar de um sidecar.

O Funchal vai-se afastando, lentamente, à medida que a força do motor do veleiro vence a pequena ondulação. O calor húmido tropical finalmente substituído pela tão desejada brisa marinha. Há uma hora que esperávamos a chegada do “Paralelo 32”, depois de nada na tarde anterior o arrancar às forças do vento que o abalavam na marina da Quinta do Lorde, a poucas milhas de distância. Nesse dia, o nosso avião, aterrado à segunda tentativa, tinha sido o último a chegar à ilha da Madeira, entre outros tantos recambiados para os aeroportos de origem ou desviados para Porto Santo ou Tenerife. É de humores o tempo aqui, já o sabíamos, aliado fiel de uma esquizofrenia de geografias que traça o encanto da Madeira. 

Agora, pintado de todos os azuis possíveis, só uns bombons de nuvens leitosas a enfeitar a abóbada, concede-nos a lucidez imprescindível para observar o Funchal do seu melhor miradouro: o mar. É daqui que tantos já o descreveram, porque é daqui que talvez melhor se compreenda a sua identidade. “Uma rampa retalhada de culturas e povoada de casinhas, que se vão aproximando e apinhando ao chegarem à cidade branca e sensual”, escrevia Raul Brandão n’As Ilhas Desconhecidas.

No topo, uma coroa de montanhas verdejantes, cedo um intenso branco em meia lua. A cidade está, certamente, mais larga e compacta desde que o escritor português ali passou em 1924 (segundo os últimos censos, vivem no Funchal mais de 111 mil pessoas, 42% da população madeirense), mas a configuração será a mesma: um esmagador anfiteatro, que se agiganta quando visto assim do mar. Arquibancadas de casas vão descendo as encostas, olhando-nos, convergindo até ao palco onde grande parte da história da Madeira se traçou: o porto marítimo. 

Primeiro a exportação de cana-de-açúcar, depois do vinho, mais tarde a chegada em força do turismo terapêutico. Não há estória que nos contem ao longo destes dias que não comece ou termine ali. E nós, embalados de ondas e contos, vemos por momentos chegarem navios a vapor, apearem-se damas transportadas em redes carregadas a braços, ingleses e escritores enfermos, pipas de vinho fortificado a rolar. O porto já não tem a importância de outros tempos, com o fulgor dos cruzeiros diluído e as atenções partilhadas com o aeroporto entretanto construído, mas ainda ali fazem escala muitas embarcações turísticas. Só em 2014, passaram quase 475 mil passageiros em navios de cruzeiro.

Já nós vamo-nos afastando do Funchal, direcção Este. Ultrapassada a Ponta da Cruz – onde altos prédios habitacionais e hotéis contaminam a paisagem de excessiva urbanidade –, a natureza vai-se impondo, feita de verdes e castanhos, escarpas abruptas que descem para encaixar Câmara de Lobos, pequenas praias de areia vulcânica ou recantos de terreno cultivável. “Aquele é o Cabo Girão”, aponta Hélder Camacho, que nos guia hoje no passeio. É “skyper freelancer”, entregando barcos pelo mundo fora, mas hoje está “a fazer um favor a um amigo de infância”, dono da Paralelo 32. “É o cabo mais alto da Europa”, acrescenta de forma mecânica. No entanto, as nossas atenções estão coladas no rochedo vizinho, de perfil mais impressionante visto daqui: um gigante triângulo de fachada tão lisa que parece ter sido aparada a golpe de um desmedido machado, o cume pontiagudo furando os céus. “Daqui a pouco já se conseguem ver os cabos do teleférico nessa rocha”, diz, seguindo-nos o olhar. Parecem umas linhas de cordel esticadas, cruzando o penhasco até à enseada que se desenha em baixo. É seguro? “Eu volto de barco”, devolve-nos. E o elevador de cor acobreada colado àquele penedo, onde subiremos daqui a pouco? “Eu volto de barco”, ri-se.

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