Um deserto cor de palha
O extremo Este da ilha é um deserto árido, afunilado, como se existisse uma barreira invisível que impede a floresta de ali chegar, como se de repente a ilha se tivesse cansado, morrendo aos poucos, mergulhada no mar. Estamos na Ponta de São Lourenço, de vegetação esparsa, uma sucessão de cabeços, fragas abruptas e recortadas. Um imenso nada, que o contraste absoluto com tudo o resto o torna mais belo.
Terá sido este pedaço de terra o primeiro da ilha a ser avistado por João Gonçalves Zarco em 1419, um ano depois de ter desembarcado em Porto Santo com outros dois navegadores portugueses, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, quando uma tempestade os fez afastar da rota que seguiam pela costa africana. O denso nevoeiro que cobria a ilha destapou aquela nesga de península e Zarco terá gritado à nau que dirigia: “Ó São Lourenço, chega!”
A nós, o fado deu-nos céu limpo, sol e muito vento, mas é também aqui que nos voltamos a fazer ao mar, desta vez num rápido e moderno semi-rígido. Arrancamos a toda a velocidade em direcção ao Ilhéu do Farol de São Lourenço (também conhecido por Ilhéu de Fora), último reduto oriental da Madeira; as Desertas lá ao fundo, para sul. O farol que lhe dá nome, debruçado sobre o fim do rochedo, é “o mais antigo” da ilha, “construído entre 1867 e 1870”. “Diz-se que foi erguido por pressão de Inglaterra depois do naufrágio do navio inglês ‘Forerunner’”, contam-nos a bordo, indicando que os destroços da embarcação constituem um dos principais locais de mergulho na zona.
O passeio da Lourenço Sardinha Boat Tours costuma dar a volta ao ilhéu, mas o mar crispado que ali começa impede-nos de prosseguir. A viagem continuará nas águas calmas e abrigadas da costa Sul. Regressamos pelas falésias bordadas do ilhéu do Desembarcadouro (também da Cevada ou da Metade), contornamos a janela natural da Ponta do Furado, abeiramo-nos do Cais do Sardinha, a casa com o mesmo nome lá no alto – único sítio com árvores em toda a zona, exóticas palmeiras – que é hoje um centro de recepção a visitantes. “Chama-se assim porque foi construída por Manuel Bettencourt Sardinha, para refúgio de férias, e manteve-se na família até ser vendida à Região Autónoma da Madeira.”
São muitos os caminhantes que vemos nas pequenas enseadas ou a caminhar encosta acima pela vereda de São Lourenço. Formigas coloridas vergadas ao vento cor-de-palha.
Cá em baixo, a Baía de Abra alarga-se, redonda, muito azul, as arribas pintadas às riscas horizontais, amarelas, acastanhadas, vermelhas, negras. “A Ponta de São Lourenço faz parte do Parque Natural da Madeira e está classificada como reserva natural parcial”, recordam, enquanto vão apontando as pequenas grutas que se formam ao longo da encosta. “Vamos entrar na maior, a Gruta do Pombo da Rocha.” Pequenas aves brancas esvoaçam à nossa chegada, as rochas multicoloridas colam-se às fotografias. No entanto, todos já se debatem entre pôr fim à fome e ao vento gelado ou resistir mais um pouco e dar um mergulho. A água está fria, fria, mas ninguém fica a bordo. Quem resiste a nadar neste reduto do mundo, entre a rudeza da natureza mais pura e selvagem?