O caminho que contorna o Engolasters é sombreado, cingido por um bosque de coníferas. O lago fica a 1620 metros de altitude e é muito popular entre os andorranos nos seus passeios de fim-de-semana. Para quem se mete à aventura em percursos mais longos, através das muitas veredas que percorrem o país de lés a lés, o lago pode ser também um refrigério para recuperar forças durante uma ou duas horas.
Um par de caminheiros jovens, carregados com grandes mochilas, segue em direcção à estrada que leva ao povoado de Encamp. A moça, franzina, de cabelos ruivos a enjeitar o abrigo de um grande chapéu de abas, caminha um pouco mais atrás — vem cansada, talvez tenham ambos percorrido o caminho íngreme desde o vale. Ao andarilho da dianteira sobra ânimo e vai entretido com o assobio de uma melodia, ou talvez apenas o refrão, um sussurro que de súbito se torna claro, quando a batida surda das botas se detém numa paragem. É uma canção francófona, um poema de Louis Aragon musicado por Leo Ferré há um bom meio século: “Est-ce ainsi que les hommes vivent / Et leurs baisers au loin les suivent…”.
Esta é uma outra face do país pirenaico que atrai multidões para esquiar em Pas de La Casa e em Soldeu, duas afamadas estações de esqui, ou para fazer compras nas lojas tax free. Uma surpresa? Nem tanto. Ou talvez um pouco, mas apenas se nos tivermos esquecido de que Andorra é um território imerso entre as montanhas dos Pirenéus e detentor de um precioso património natural. É verdade que a crise que caiu sobre a Europa nos últimos anos tem provocado um declínio nas tradicionais atracções de Andorra e reduzido o número de visitantes, a sua principal fonte de receita. Mas há muito que o país recebe gente em busca da fruição do seu património natural, caracterizado por uma orografia extremamente acidentada, com vales profundos e vários picos acima dos 2000 metros. A repercussão internacional de iniciativas como as da Ronda dels Cims e da Marató dels Cims, provas de montanha programadas habitualmente para o Verão, é um testemunho da popularidade de Andorra entre andarilhos maratonistas.
Uma parte do país está classificada pela UNESCO como Património Mundial, mas Andorra poderia bem dar-se ao luxo de dispensar tal caução. Para tanto lhe valeriam três parques naturais — o de Madriu-Perafita-Claror, o de Sorteny e o de Comapedrosa, inúmeras e tentadoras veredas bem assinaladas e disponíveis para as andanças do trekking, lagos de montanha com os seus nevoeiros e lendas, uma flora alpina e sub-alpina a condizer com a altitude média do território e vistas de arrebatar lá nos altos, ou a caminho deles, em mirantes que são muitos e muito acima dos mil metros.
Andorra é também um território de povoamento antigo, com um acervo de riquíssimas narrativas históricas imprescindíveis ao retrato do país, um principado que tem perto de mil anos de existência e conserva exemplos notáveis de arquitectura pré-românica e românica. E histórias para serem contadas, ouvidas ou lembradas ao longo das centenas de quilómetros de trilhos mil vezes palmilhados por pastores e contrabandistas, muito antes de Andorra se tornar um paraíso para esquiadores e maníacos de compras.
Natureza e cultura. Para o viajante pouco fiado em estereótipos que se agarram como lapas à pele dos lugares, eis um itinerário bicéfalo, com um pé na estrada e outro na fé, através dos caminhos daquele que, como diz a propaganda turística, é o maior dos mais pequenos Estados europeus.
No interior dos parques
Sem surpresa, muitas das jornadas mais interessantes são as realizadas no interior dos parques naturais e entre essas estão as que levam os caminheiros às serranias mais próximas do céu e às dezenas de lagos com que se desenha, também, a paisagem andorrana — a água é, realmente, um elemento muito presente nas montanhas pirenaicas. Os lagos de Tristaina, de la Nou, de Juclà, Negre e Moreno estão entre os muitos enquadrados em impressivos cenários e nas rotas mais prezadas do país.
O Parque Natural de los Valles de Comapedrosa, no noroeste, à beira de La Massana, abrange um maciço com impressionantes panoramas de altitude e oferece algumas das rotas mais exigentes, disponibilizando também visitas guiadas, como as que percorrem o circo glaciar de Pla de l’Estany e as margens do rio Pollós. Quase sempre à vista do caminhante, ergue-se o farol nevado do Pico de la Comapedrosa, o ponto mais elevado de Andorra, a 2942m.
O Parque Natural del Valle de Sorteny, no norte, junto à fronteira francesa, alberga dois dos cimos mais elevados de Andorra, o Pico de l’Estanyó (2915m) e o Pico de la Serrera (2913m), ambos metas ou pontos de passagem de percursos pedestres. Com ou sem guia, ou com um guia impresso, a zona é propícia a circuitos de interpretação da paisagem — natural e cultural. Há zonas húmidas ricas em fauna, passarada e pequenos mamíferos, e a flora do parque, variada e abundante, inclui espécies consideradas únicas em toda a cadeia montanhosa dos Pirenéus.
A jóia da coroa do património natural e cultural de Andorra é o Parque Natural del Valle del Madriu-Perafita-Claror, que mereceu a classificação pela UNESCO como Património Mundial, na categoria de paisagem cultural, homenageando-se assim a exemplar relação entre a população humana residente e o meio ambiente. Nos termos da UNESCO, o parque, que ocupa quase 10% da superfície do país, é “um microcosmos bastante representativo da forma como os seres humanos aproveitaram os recursos das zonas altas da cordilheira dos Pirenéus, ao longo de milénios”. A classificação sublinha também a “dimensão representativa dos avatares económicos e dos sistemas sociais dos seus habitantes e a preservação da prática do pastoreio e da cultura montanhesa”, aspectos que os percursos pedestres do parque permitem conhecer. Se no que toca à imponência dos cenários naturais os parques de Comapedrosa e de Sorteny facilmente se podem revelar como os preferidos dos trekkers, o espaço do Madriu-Perafita-Claror, um paraíso de biodiversidade, é o mais paradigmático quanto à integração natureza-cultura. E o único, entre os três, que não tem uma única estrada no seu interior.
O santuário do Madriu
Um dos caminhos mais populares é o GR7, que se estende ao longo do rio Madriu, até ao sistema de lagos onde tem a sua nascente. Mas, para um panorama em jeito de voo de águia, o trilho ideal é o que ascende desde o Coll Jovell, na proximidade de Escaldes- Engordany, até ao miradouro de Tossa del Braibal, pendurado a 2650m numa crista que delimita o vale, de origem glaciar. Não se ouve o cantar do rio, que corre lá em baixo, entre pedra e verde, mas em contrapartida podemos avistar o cume nevado de Comapedrosa do outro lado. No final da Primavera e início do Verão não é raro sobreviverem nos picos e nas vertentes elevadas os últimos lençóis de neve do Inverno. Para quem deseje deter-se mais tempo, há um abrigo ali mesmo à mão, a meia dúzia de passos do miradouro.
O caminho ao longo da crista, ventoso, continua pela sequência de grandes penhas da Caser dels Pans e pelo Pic dels Agols, uma passagem intrincada pelo meio de um oceano encapelado de penedos. Depois, até ao lago Estany Blau, é sempre a descer — o que, como sabem os montanhistas, nem sempre são favas contadas. Este pedaço do trilho tem um grau de dificuldade obviamente maior do que o GR7 (e exige, absolutamente, calçado adequado e boa forma física), mas permite uma ligação (muito pouco utilizada e agreste) ao trilho do vale.
O GR 7 parte das imediações de Escaldes- Engordany. Já no vale, o caminho segue em contra-corrente com as águas do Madriu, ao longo de uns 13km, até ao lago de la Bova, a 2400m de altitude. O retorno ao ponto de partida, na sua versão mais suave, é feito em sentido inverso, a menos que o andarilho se decida por regressar a Escaldes pela vereda da crista.
O primeiro trecho do caminho, com passagens delimitadas por um varandim em madeira, inclui um pequeno túnel, logo seguido de uma encruzilhada de onde parte um trilho ascendente e mais estreito para o Coll Jovell. Seguimos pelo caminho do vale, que mais adiante tem a forma de vereda empedrada, andarilhando aqui e ali à sombra de bosques. Caminha-se à vista de sinais da presença humana no território: uma calçada, agricultura em terraços, hortas, pequenas cabanas de pastores. À medida que se sobe em direcção ao refúgio de Fontverd, o traçado torna-se mais sinuoso e irregular. A casa de pedra do abrigo está a 1900m de altitude e a vista para o vale é esplêndida, dominada por uma espécie de esplanada verdejante. Os cenários que acabamos de atravessar, por vezes por um caminho paralelo ao rio, confirmam os critérios de eleição do Vale do Madriu-Perafita-Claror pela UNESCO, uma paisagem tanto natural como cultural, testemunha das formas como a população estabeleceu uma relação harmoniosa com o meio. Um pequeno museu mostra, a passos tantos, como em tempos mais antigos os habitantes usaram a força motriz das águas do Madriu num “martelo hidráulico” para trabalhar o ferro.
Até Fontverd, a 6km de Escaldes- Engordany, decorreram duas horas de caminhada lenta, com muitas paragens à sombra dos bosques que habitam as margens do Madriu. A etapa com maior desnível (cerca de 350 metros) é a que se segue. São quase 2km a subir até ao refúgio de Riu dels Sorris, localizado a uma altitude de 2230m. Com sorte, e olhar atento, avistaremos uma ou outra cabra-montesa de focinho erguido, alvoroçada pela presença de caminhantes.
Para trás deixamos o refúgio de Fontverd e duas cabanas, as de Farga e de Serrat de Barracota, que podem servir de abrigo temporário em caso de tempestades súbitas, fenómeno comum nestas paragens, e continuamos por encostas onde as árvores se vão tornando mais raras. A subida até aos lagos requer ainda uma boa meia hora de caminho e fôlego alquebrado. É destes lagos calmos de montanha, que fazem parte do círculo glaciar de Gargantillar, que o rio Madriu recebe as suas águas cristalinas.
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Andorra: Água, pedra e bosque