Junto à igreja portuguesa de 1502, de portas cerradas, a terceira oração do dia (oração diz-se salah; o nome da terceira é zhor) flutua na praça de Al Kanissa como um manto em transe. Por nós, ficávamos já em El Jadida, a ouvir os cânticos. Cruzamos a casa de infância de Driss Chraïbi, o escritor e professor marroquino que, nos últimos anos do protectorado francês (terminou em 1956), se dedicou a temas como o colonialismo, o racismo, a identidade cultural e a condição da mulher nas sociedades árabes. Por baixo da placa com o nome de Chraïbi, as mulheres levam bebés em direcção à farmácia, os homens lêem o Corão à sombra. Junto à rua do Celeiro (escrita mesmo assim sobre uma parede em adobe), entramos na antiga cisterna portuguesa, um lugar fundo, que pede tempo. “O filme Othello foi feito aqui”, conta Mohammed, sobre a obra de Orson Welles. (Espreitamos Othello, já depois do regresso a casa, e era verdade: os canais de luz e o espelho de água da cisterna estão lá, como também muitas imagens do forte de Essaouira, que visitaríamos mais tarde).
Lagostas ao sol
Depois de Welles sob abóbadas manuelinas e vistos o forno comunitário, o hammam, o mar e a mesquita, de onde agora cai o silêncio, o caminho prossegue para Oualidia, a comuna rural onde o peixe salta fresco para leilões e as lagostas saem inquietas da água. Do lado direito, há uma enorme estação de exploração de fosfato (50% das reservas deste mineral não renovável estão em Marrocos, fazendo do país o maior exportador do mundo), ainda antes de chegarmos à pacatez da vila.
“Salam aleikum”, saúda um pescador, mas ainda não sabemos responder aleikum salam. A mão ao peito substitui, de alguma forma. Quando nos esgueiramos da praia as cabeças são às dezenas, entre um estendal de barcos e motorizadas. Tudo sobre a areia. Homens de todos os tamanhos estripam robalos junto ao mar – à espera que as ondas levem o que não pertence à boca – e juntam ouriços, ostras e mexilhões em baldes. Otman vem na nossa direcção de óculos espelhados e uma lagosta nas mãos. “É fresca, acabada de apanhar”, garante, fazendo-nos o quilograma por 300 dirhams, quando no restaurante o mesmo valor compra 300 gramas. “Nós não pomos nada. Pegamos nelas, preparamos e grelhamos assim ao natural. Depois, servimos naquelas mesas”, aponta. Mesmo assim, “as pessoas preferem ir ao restaurante”. “Não percebo”, desabafa Otman, à espera que lhe compremos a lagosta. Por nós, comíamos já aqui, com os pés na água e histórias de marés, mas há outros caminhos nos mapas que não os da boca.
Na praia dos gnaoua
Ao princípio da noite, Essaouira (“a bem desenhada”) é uma feira popular. Famílias completas desfilam no passeio largo junto à praia, a admirar os carrinhos artilhados de luzes e algodão-doce, batatas fritas e pipocas, miúdos que jogam à bola e rebolam sobre a areia, homens que contam histórias de entreter. As esplanadas ficam inteiras a olhar o céu. Pensando nos séculos atrás, vemos escravos negros a arrastarem barcos sobre o areal, ou chegados em pé das rotas guineenses, malianas, senegalesas, mauritanas. Olhando os anos de 1970, uma tribo de hippies venera o oceano e fabrica música com a mistura étnica de Mogador (o nome dado pelos portugueses à cidade no início do século XVI). São as histórias que nos contam, nos salões de chá e nas lojas de malas e chinelos, os marroquinos conversadores, encantadores de serpentes e de pessoas. Queremos ficar em Essaouira. A ver se é desta.