À saída do porto, o vento sopra o nome de Essaouira. Seguimos-lhe o assobio, de volta à medina, cruzando canhões portugueses e vendo as ruínas de uma antiga igreja de Mogador. A cidade foi perdendo o rasto lusitano e ganhando as influências negras em volta. Tornou-se forte em música – todos os anos (habitualmente em Junho) acolhe o Festival de Gnaoua e Músicas do Mundo, que começou com uma mão de artistas de rua e acabou por estender o palco a nomes internacionais, tornando-se um dos mais conceituados festivais da chamada world music. “Mesmo sendo uma coisa tradicional, nós, jovens, continuamos a tocar gnaoua”, conta Imad-Eddine Dably, músico e comerciante de discos, numa introdução à história daquele que é “o centro espiritual do transe em Marrocos”.
Nas paredes da loja há tamborins e tambores, krakeb (espécie de castanholas em metal) e guembris (também conhecidos como hejhouj ou sintir), baixos de três cordas feitos a partir de pele de camelo e de intestinos de cabra. São os artesãos mais velhos que os fabricam, nas soleiras de Essaouira. Dably relata o transe do fim-de-semana antes do Ramadão: “Uma grande festa”, inicia, sentado no seu banco em tuia (madeira rara da região). “Começamos pelo sacrifício de um animal – uma cabra ou um borrego – e vamo-nos juntando todos numa roda, vestidos conforme manda a tradição gnaoua, com roupas coloridas e chapéus como este [põe-no sobre a cabeça].” Nesses dias, as pessoas reúnem-se para festejar, tocar, cantar e dançar o gnaoua, mas também para cumprir “a cura através do transe, na presença dos marabutos [muçulmanos eremitas respeitados como santos no Magrebe]”. “No final, as pessoas andam pelas ruas a tocar tambores e guembris até às dez da manhã, e cada um entra no transe que quer.”
Dably continuará a encantar pessoas durante as tardes de Verão, com o guembri ao colo e as promessas de um queijo de cabra feito longe, pelos pais, em terreno de argânias. Na mala levamos um disco de música gnaoua “dos bons”, garante o músico, para não nos esquecermos de como sopra o vento por estas bandas.
___
Marraquexe e a carta de Abdel
Continuamos à espera da carta de Abdel, o homem que debruçou os cotovelos sobre uma banca de laranjas, na praça Djemaa El Fna, para contar a felicidade que era para um casablanquense ter uma casa em Marraquexe. “Tem um terraço que dá para as traseiras. É muito pequeno, mas tem espaço para uma mesa e alguns vasos com plantas”, descreve o marroquino.
O sorriso de Abdel é como um lento acordeão, mudo assim que olha em redor para os encantadores de serpentes, malabaristas, contadores de histórias, leitoras de sinas, vendedores de frutos secos e de sumos de laranja. “As pessoas [“les gens” é a expressão utilizada] ficam demasiado agressivas durante o Ramadão. Se não sabem tolerar a fome e aceitar as regras, então que não sigam o ritual, mas andarem assim é que não”, lamenta Abdel, a 23 minutos do iftar, quando poderá celebrar a comida com toda a felicidade da boca. Deixou Casablanca porque estava “farto” e sabe por que veio para Marraquexe, mas não consegue explicar. Diz-nos para olharmos ao redor, pela praça. A explicação está dada.
Marraquexe não é a Djemaa El Fna (há tantas imagens à volta para guardar!), mas é muito. Sempre que nos sentimos perdidos nos becos da cidade, nas especiarias e ervas do souk ou nos trilhos de palmeiras de um jardim como o Majorelle; ou sempre que um guia nos quer levar às tinturarias, que não sabemos como escapar às histórias feitas de tapeçaria e doçaria e quinquilharia a céu aberto, voltamos à praça e tudo se compõe. É um pouco como explica Elias Canetti, n’As Vozes de Marraquexe: “Para nos familiarizarmos com uma cidade exótica, precisamos de um espaço fechado sobre o qual possamos exercer algum direito e onde possamos estar sozinhos, antes que a desordem de vozes novas e incompreensíveis se torne demasiado grande.” E esta praça aberta é fechada porque o ruído é muito, porque este é o último dia de viagem depois de uma costa calma, porque já sabemos dançar o jogo dos tapetes entre a multidão fervente e os vendedores mais hábeis do mundo que conhecemos. Venham as motorizadas e bicicletas rasantes, as flautas e sumos a dez dirhams, venham os aromas da gasolina, dos sabonetes, da canela e do açafrão, venham os burros e as mulas, e as pulseiras que nos colocam no pulso sem sabermos como. Tudo isto aprisionou Abdel. Mas nós tivemos de partir. Ficou pelo meio uma morada.