- Manao ahoana ianao?
Tento responder em malgaxe:
- Tsara fa misaotra.
Perante a boa disposição da senhora que parece estar ali a toda a hora, dificilmente um cliente poderá dizer que está mal e muito menos esquecer-se de agradecer a forma gentil como é tratado.
A sensação agradável que Antananarivo produziu em mim ameaça prolongar-se por mais uns dias. Uma boa meia hora mais tarde, chega o pequeno-almoço. Ao meu lado senta-se um adolescente. Sorri, um sorriso dócil, sem uma única palavra. A senhora acaba de pousar tudo o que carrega na bandeja e, antes de me virar costas, de volta à cozinha, diz:
- Mazoto a homana.
Agradeço. Apetite não me falta.
- Misaotra.
Como manda a boa educação, partilho a refeição com o menino. Ele não agradece, limita-se a esboçar um sorriso. Nas pupilas não se reflecte a minha imagem, projecta-se todo um país – as carências, a todos os níveis. À minha frente, os barcos vão chegando, com os seus passageiros, com legumes frescos, com peixe, com galinhas. O dia vai despertando: a menina que escova os dentes na margem, homens e mulheres, rostos emoldurados por sorrisos que parecem prolongar-se até à eternidade, abrindo as suas pequenas tendas de comércio, a bruma que vai subindo das águas como um vapor até desaparecer. E eu aguardo, pacientemente, que a maré seja favorável para o ferry rumar até ao meu destino.
Caminho junto ao porto, crianças e idosos acolhem-me com um expressão serena e o rapaz, num silêncio que me perturba, segue os meus passos - parece perceber as minhas intenções quando fotografo as crianças, organiza-as, disciplina-as, fugindo, ele próprio, do protagonismo. Quando a manhã avança, já sem a neblina que marcara a alvorada, regresso ao hotel, retiro do meu saco um pacote de bolachas e, por essa altura, já o miúdo que me persegue como uma sombra tem um companheiro ao lado dele. O primeiro gesto, logo secundado por um dos seus milhares de sorrisos, é partilhar com o amigo aquilo que acaba de receber nas mãos.
Só nessa altura percebo que o menino é surdo-mudo.
Eu parto, por um mar revolto, rasgando-o, com ondas que agitam o barco, olho o cais, ele continua ali, de pé, com uma estátua, com a diferença de que vai acenando.
A vida simples
A ilha de Sainte Marie já se avizinha, o barco avança agora mais lentamente. No porto, à saída, respiro o ar e entro num carro de marca francesa, uma raridade por estes dias. Não há chave, apenas uma ligação directa, pelo meio uma pequena avaria, nada de anormal, até que chega onde uma piroga me espera. Durante a maré baixa, pode-se caminhar simplesmente entre a ilha de Sainte Marie e a Île aux Nattes.
A travessia é curta, do outro lado, mais sorrisos, um mundo que é de outro mundo, um mar de um azul sonhador, a vegetação para o interior, onde se esconde a recepção do hotel - a visão mais próxima que se pode ter do paraíso. Não há muito para visitar por aqui, leia-se monumentos, não há eventos culturais, há toda a simplicidade desta gente que ainda se apaixona pelas coisas simples da vida, talvez porque não conhece outra realidade, a que nos torna ambiciosos, a que nos faz aspirar a muito mais, numa perpétua exigência sem lógica e sem sentido. Para quem quer, a vida divide-se entre mergulho, pesca, um passeio de barco, horas e horas deitado na areia branca, escutando o rumor das ondas que se desfazem quase em silêncio.