Estranhos navios no canal
As glórias da Índia durariam pouco, como se sabe, e em meados do século XVI já os sinais da decadência nos negócios orientais vinham pontuando algumas crónicas. Gaspar Correia, Diogo do Couto e Fernão Lopes de Castanheda fustigavam, ainda que de forma prudente, discreta, os desmandos dos capitães e a corrupção que se generalizava em todas as instâncias. Mesmo João de Barros, o mais cauteloso de todos, não se eximiu a tocar no assunto e chegou a atirar umas farpas sobre “o feroz individualismo que encheu de vilezas a epopeia do Oriente; a incapacidade dos governadores, escolhidos sem acerto (como podia governar a Índia quem no reino não sabia governar a casa?), a cobiça que os devorava e lhes fazia esquecer, logo no primeiro ano, o juramento de lealdade que tinham prestado ao rei” – deve-se a negra síntese a Rodrigues Lapa.
Agora, na Praça Vasco da Gama, em tarde de inconfortável humidade como quando a monção cresce subitamente sobre as terras e os mares do subcontinente, com a luz dourada do poente adoçando a fachada da Igreja de Nossa Senhora da Esperança, do outro lado das águas, entre as palmeiras da ilha de Vypin, e à vista dos grupos de pescadores que mal cai a noite arrecadam as alfaias ao lado das famosas redes chinesas e se juntam na praia a beber chá à luz de lampiões, achar-se-á o viajante tomado pela sensatez de ponderar a gesta das aventuras portuguesas nestas bandas experimentando outro ponto de vista – ensaiando, enfim, outra pele. Ou encenando uma espécie de anti-história, sob pena de sentir que não chegou mesmo a sair de casa… Senta-se, imaginariamente, com aqueles pescadores de tronco nu e phadi branco e simples enrolado à volta do corpo, a observar com apreensão uns estranhos navios com grandes cruzes vermelhas pintadas nas velas brancas, trazidos pelos ventos do mar Arábico e entrando devagar nas águas do canal de Vembanad, aí por volta de 1501 do calendário gregoriano.
Os cronistas indianos da época falariam amiúde da cupidez dos recém-chegados. E nas suas narrativas, como as do historiador K. M. Panikkar, os portugueses, que então se maravilhavam com a sofisticação e opulência dos palácios de Calecute e de Cochim, não apareciam nas crónicas orientais com um retrato favorável: eram observados como uns “homens corpulentos e grosseiros, sem apreço pela mulher, incapazes de compreender a arte e a cultura e unicamente sensíveis à linguagem da força”. Afinal, a Ásia que os europeus alcançavam desta sorte já havia deslumbrado anteriormente outros viajantes: Marco Polo, que exaltou as esplêndidas riquezas das províncias do Sul da Índia, ou o persa Al-Beruni, que visitou a região no século XI e deixou um livro inteiro consagrado aos saberes filosóficos, matemáticos e astronómicos locais, incluindo um estudo comparativo entre o pensamento indiano de então e o pensamento clássico grego.
Bazaar Road e os signos da colónia
Este caminho que vai da Praça Vasco da Gama a Mattancherry é o mesmo que ia de Cochim de Baixo a Cochim de Cima. Os topónimos são quinhentistas e do tempo em que a cidade se ia alargando debaixo das barbas reais – temente das incursões do inimigo de Calecute, o rajá ia facilitando a vida e os negócios ao recente aliado europeu. O primeiro assentamento português (e europeu) na Índia, firmado em 1503, tornar-se-ia o segundo maior do império, a seguir a Goa, e conheceria o seu tempo de glória na primeira metade do século XVI, embriagado pelo fugaz rumor da prosperidade no bulício de armazéns e estaleiros, onde os lusos navios se remendavam e se abasteciam para a grande viagem até à capital do reino: “Nesta fortaleza e povoação de Cochim há el-rei nosso senhor corregimento de suas naus, e outras se fazem de novo, assim galés e caravelas, em tanta perfeição como que se fizessem na ribeira de Lisboa. Aqui se carrega grande soma de pimenta e outras muitas especiarias e drogarias que de Malaca vêm, e, daqui, se levam para Portugal”, cronicava Duarte Barbosa.