Fugas - Viagens

  • o canal Vembanad, à vista
das redes chinesas da ilha de
Vypin
    o canal Vembanad, à vista das redes chinesas da ilha de Vypin
  • Jew Town
Road, em plena Mattancherry,
está ladeada por lojas de
antiguidades e de especiarias
    Jew Town Road, em plena Mattancherry, está ladeada por lojas de antiguidades e de especiarias
  • Jew Town
Road, em plena Mattancherry,
está ladeada por lojas de
antiguidades e de especiarias
    Jew Town Road, em plena Mattancherry, está ladeada por lojas de antiguidades e de especiarias
  • Graff iti na Bastion Street,
junto à Basílica de Santa
Cruz. Na Jacob Road, ao
lado, tal como na Bazaar
Road, dezenas de graff iti
evocam temas culturais
do passado e do presente
de Fort Kochi
    Graff iti na Bastion Street, junto à Basílica de Santa Cruz. Na Jacob Road, ao lado, tal como na Bazaar Road, dezenas de graff iti evocam temas culturais do passado e do presente de Fort Kochi
  • Igreja de Nossa Senhora
da Esperança, na ilha
de Vypin.
    Igreja de Nossa Senhora da Esperança, na ilha de Vypin.
  • À direita,
em baixo, um
barco prepara-se
para desembarcar
passageiros num
recanto das
    À direita, em baixo, um barco prepara-se para desembarcar passageiros num recanto das "backwaters"

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Índia: Das coisas que achamos no caminho de Vypin a Mattancherry

Séculos depois, transitadas que foram muitas barcas e marés, ainda são de espantar “as cousas e fenómenos que é costume ver quando se vai da ilha de Vypin à sinagoga de Mattancherry”. Logo depois de passarmos o cais das lanchas e ferries e pelas mui acudidas e olorosas cozinhas ambulantes onde nos podemos abastecer de chamuças, avistamos signos arquitectónicos da opulência do porto, agora transformados em hotéis de charme. Um pouco adiante, uma passagem menos movimentada da Bellar Road concede uma fruição mais folgada da assombrosa heterogeneidade de cores, vistas e sucessos que caracterizam qualquer cidade indiana. É uma vertigem de sortidas disposições e imagens: no meio da rua, as paradigmáticas vaquinhas indiferentes a tudo, ruminando passeios sem destino, dois homens a ler jornais, sentados ao lado de um ícone pintado de Che Guevara, graffiti pós-modernos tintados sobre paredes desbotadas, figuras divinas de sensualidades opulentas e coloridas, amassadas por algum escultor popular, o canal Eraveli e as suas águas recolectoras de lixo, cujos odores se misturam com os das especiarias usadas nos cozinhados das gentes do bairro.

Esta jornada a pé submerge o caminhante em quadros vivos da vida exacta de Fort Kochi e é a forma mais idónea de conhecer as faces menos ou nada turísticas da Cochim contemporânea que respira ao longo da Bazaar Road. É quase como um filme de época em que intermitentes anacronismos nos dão a medida da sobrevivência do que se demora, através dos tempos, como essência do lugar: as lojas escuras com as suas longas bancas cobertas de tigelas cheias de diferentes tipos de arroz, de lentilhas, de especiarias, os armazéns coloniais utilizados no comércio de especiarias e arquitectados com elementos de inspiração lusa, camionetas de carga a entupir a rua ou a manobrar resvés as valas de saneamento a céu aberto, lâminas de canela a secar ao sol nos pátios dos casarões, cabritos a vaguear entre o trânsito de riquexós. E, de súbito, a Igreja de Nossa Senhora da Vida, uma das mais antigas igrejas portuguesas de Fort Kochi, um tanto tristonha e corroída pela humidade, com fachada maneirista virada a oriente e um portal manuelino semelhante ao da sua congénere de Vypin.

Na sinagoga

Mais adiante, ao lado do templo hindu de Pazhayanur, acha-se o Palácio de Mattancherry, ou Dutch Palace, nome que advém de ter sido o edifício original restaurado no século XVII pelos holandeses. É, todavia, de feitura portuguesa, um pouco ao estilo das casas senhoriais lusitanas, e foi oferta que se fez, em jeito de diplomacia, ao rajá de Cochim. Os murais interiores, com figurações de narrativas do Ramayana e do Mahabaratha, são esplêndidos, e valem, por si só, a visita, além de serem representativos de uma importante escola de pintura local dos séculos XVI e XVII.

O coração de Mattancherry mora ao lado: lojas de antiguidades, com escultura em madeira e outras artes malabares, especiarias à porta das lojas, metidas em sacos de juta, as ruas e as casas da judiaria que acolheu cristãos-novos fugidos da Inquisição. E, num beco onde formigam lojas de seda, a bela e centenária Sinagoga de Paradesi, um dos cenários escolhidos por Salman Rushdie para O Último Suspiro do Mouro, livro que é uma parábola de miscigenações culturais tão velhas como o mundo. A história anda às reviravoltas com a vida de um descendente de Vasco da Gama, Moraes Zogoiby. O mouro tem também como antepassados Abu 'Abd Allah Muhammad XI, último rei árabe da Andaluzia, e uns certos judeus sefarditas que se estabeleceram em Cochim e aí fundaram a Sinagoga de Mattancherry, em meados do século XVI, sob a protecção do rajá (a primeira sinagoga havia sido destruída pelos portugueses). Bem vistas as coisas, é fácil entrever que o livro de Rushdie nos fala de um tempo antigo em que tudo (e toda a sorte de gente) parecia já estar em toda a parte, conquanto a um ritmo mais lento de expansão e mistura. Talvez a mestiçagem seja, afinal, a verdadeira essência de tudo quanto existe no mundo, ao contrário do que os nacionalismos estimulam a crer, eis o que o andarilho se põe a cogitar, sentado à porta da sinagoga, à espera de que a abram e a descansar da longa caminhada que o trouxe do cais onde desembarcou chegado da ilha de Vypin.

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